A 68ª edição do Festival de Berlim arranca debaixo dos anunciados ventos de mudança no comportamento social, a luta pela igualdade de sexos e o desprezo pelo assédio sexual. E que, de resto, não deverão ser imunes aos tumultos e consequentes focos de afirmação feminina que dominaram o final do ano passado.
O cineasta alemão Tom Tykwer irá presidir ao júri internacional responsável pela seleção do próximo Urso de Ouro, onde será acompanhado pela atriz belga Cécile de France, o programador espanhol Chema Prado, a produtora americana Adele Romanski, o compositor japonês Ryuichi Sakamoto e ainda a crítica de cinema americana Stephanie Zacharek.
Esta será também uma edição marcada pelo anúncio da retirada do diretor Dieter Kosslick à frente do festival, cujo mandato termina em maio do próximo ano. Ele que iniciou o seu percurso à frente da Berlinale em 2001, portanto durante boa parte deste século XXI. Essa motivação acaba por refletir o desejo de diversos cineastas alemães que sugeriram a mudança por uma comissão de transição que reflita esse “balanço entre sexos”, bem como uma maior aproximação aos concorrentes certames de Veneza e Cannes.
Wilem Dafoe será um dos homenageados da Berlinale e receberá um prémio de carreira. Recorde-se que o ator americano está igualmente nomeado para o Óscar de Melhor Ator Secundário pelo seu trabalho em The Florida Project, um filme de Sean Baker com estreia nacional marcada para esta semana.
E os portugueses? Pois, teremos uma presença bastante robusta que tratamos numa outra peça.
A confirmação dos habitués
Polémicas à parte, a operação competitiva inicia-se com a animação Isle of Dogs, de Wes Anderson (não confundir com o filme A Ilha dos Cães, de Jorge António), naquela que é uma estreia com um filme de animação, embora seja a segunda vez que o realizador americano abre Berlim. E, se quisermos prolongar a numerologia, será a quarta em que mostra um filme seu e a segunda que recorre à animação ‘stop motion’ (depois de O Fantástico Senhor Raposo, em 2009).
Anderson propõe-nos então uma fábula sobre um jovem que procura o seu cão desaparecido e enviado para a ‘ilha dos cães’, um pedaço de terra isolado e usado como depósito de lixo, onde são enviados por decreto do ‘mayor’ Kobayashi os cachorros considerados responsáveis por uma febre canina que assola a cidade de Megasaki.
Dos 19 filmes a concorrer para o Urso de Ouro, há que assinalar a presença do americano Gus Van Sant, com Don’t Worry, He Won’t Get Far On Foot, um filme da Amazon Studios, com Joaquin Phoenix a assumir mais um papel biográfico, no caso do cartoonista John Callahan, após sofrer um desastre de viação que o deixa quadriplégico no decurso de uma noite de copos. Rodeado de limitações, terá de usar todo o seu sentido de humor e observação para se reinventar num mundo bem diferente. De registar que Van Sant dará ainda uma master class sobre o seu cinema intitulada A Place Like Home, integrada no evento Berlinale Talent.
Da pouco relevante embaixada de talentos vindos de Hollywood, haverá que contar com a presença de Robert Pattinson e Mia Wasikowska, a representar Damsel, o western de David e Nathan Zellner com estreia mundial o mês passado em Sundance. Steven Soderbergh atrairá igualmente as atenções, com Unsane, o tal filme rodado com um iPhone, embora exibido fora de competição,
O brasileiro José Padilha (vencedor do Urso de Ouro com Tropa de Elite) desembarcará em Berlim, agora fora de competição e depois da brava série Narcos, com 7 Days in Entebbe, o filme que descreve o famoso sequestro de um avião no Uganda, por piratas do ar, e a consequente operação de resgate levada a cabo forças especiais israelitas. O cast é defendido pelo alemão Daniel Bruhl e a britânica Rosamund Pike.
Benoit Jacquot é igualmente um habitué da Berlinale, confirmando desta feita a sua terceira participação na competição com Eva, e o encontro entre Isabelle Huppert e Gaspard Ulliel numa cabana durante uma tempestade. Também em francês, o compatriota Cédric Kahn sugere-nos Le Prière, um filme sobre um toxicodependente que usa a oração como forma de cura para a sua doença.
A esperança reside ainda no cinema do alemão Christian Petzold, também presença regular em Berlim, onde reside, com Transit, sobre um ex-nazi que assume uma diferente personalidade em França, no que parece até um complemento do genial Phoenix, de 2014. Por fim, mas não em último, a demanda do norueguês Erik Poppe sobre o dia fatídico e o pesadelo em Utoya (o título é precisamente esse, Utoya 22.Juli), quando morreram diversos jovens no ataque de ódio de Anders Breivik.
Temos ainda de mencionar a presença de Lav Diaz, talvez um dos grandes autores de Berlin. Porque míticos têm sido os seus filmes, também pelo seu tempo de duração, como o anterior The Woman Who Left, com as suas 8 horas de duração, que assistimos religiosamente há dois anos atrás. Regressa agora com a sua mítica ópera rock de 4 horas, Season of the Devil, que nos deverá remeter de novo na história das Filipinas.
Há ainda o regresso do russo Alexey German, com Dovlatov, sobre o escritor russo Sergei Dovlatov, e da polaca Malgorzata Szumowska, em Twarz, sobre a mudança de rosto que provoca problemas de identidade a um homem. É Romy Schneider que volta também, embora como a personagem encarnada por Marie Baumer ao encenar a sua derradeira entrevista numa clínica de reabilitação, em 3 Days in Quiberon.
E as surpresas dos novatos
E se estiverem aqui as surpresas da Berlinale? Por exemplo, em Las Herderas do estreante paraguaio Marcelo Martinessi e o cinema focado na realidade do seu país. Ele que já lhe ganhou o prémio de melhor curta em Veneza, com La Voz Perdida. Sugere agora um filme no feminino, apoiado na descoberta de uma mulher de 60 anos que se apercebe que o dinheiro de uma herança com que ia vivendo já desapareceu. Só que esta ‘herança’ acaba por englobar muito mais do que bem materiais, mas antes a realidade de muitas mulheres paraguaias e com uma influência assumida de Fassbinder e Todd Haynes. O outro é o romeno Touch Me Not, da jovem igualmente estreante Adina Pintilie debruçado sobre a exploração da intimidade, focado na vivência de três pessoas com problemas de intimidade.
Incluímos também aqui o nome do mexicano Alonso Ruizpalacios, também ele igualmente ligado a Berlim, pois foi aqui que se estreou com o fantástico Gueros, vindo a ganhar o prémio de melhor primeiro filme, em 2015. Regressa agora para afirmar a sua segunda longa, Museo, com Gael García Bernal, sobre o extraordinário roubo de mais de uma centena de artefactos históricos que um grupo de assaltantes realizou em 1985. E acreditamos também na italiana Laura Bispuri, e no seu segundo filme, Figlia Mia, sobre uma jovem dividida entre a mãe que a criou e a mãe biológica que a quer de volta, motivando um confronto entre Valeria Golino e Alba Rohrwacher.
Esperemos apenas que chegados a dia 24 tenhamos motivos para acreditar nas verdadeiras surpresas escondidas em filmes (e cineastas) que arrancam aqui uma auspiciosa carreira. Assim ficará dignificado o nome da Berlinale.