71º Festival de Cannes. Filme de Abertura, competição
O iraniano filma em espanhol, mas como se fosse em farsi, sugere-nos um melodrama, mas aponta mais alto, para a força das relações interpessoais e as suas surpresas. Ou seja, Asghar Farhadi filmou o casalinho Penélope Cruz-Javier Bardem, e encetou um novo ensaio de casais desavindos, talvez mesmo à beira de uma separação. Mas deixemos de lado as referências narrativas, o plot que interessa menos do que o vigor de um cinema mais profundo, que pode invocar alguma proximidade ao cinema de Almodóvar ou mesmo de Antonioni.
A referência a Almodóvar não é ingénua, já que ele é o segundo cineasta a abrir o festival em língua espanhola, depois, precisamente, de Almodóvar em Má Educação. A outra referência é a colaboração que teve com o seu habitual diretor de fotografia, José Luis Alcaine, responsável pelo look do cineasta de La Mancha, embora editados pela habitual colaboradora do iraniano.
É assim Everybody Knows, um filme que parece reservar no seu título parte de uma farsa, ou de uma novela – ou quem sabe até à espera de ouvir o famoso tema de Leonard Cohen -, mas o delicado Farhadi trocar-nos a voltas. Everybody Knows, ou no original Todos lo Saben, joga com os códigos, com os géneros, com uma história em que deixa pelo caminho algumas ratoeiras, como engodos para um filme que acaba por se situar mais no exemplar trabalho dos atores.
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Percebe-se também como o iraniano se deixou seduzir pela geografia e pelos costumes locais que incorpora do seu filme como se fosse um naturalista cineasta castelhano. Só que esse lado hispânico mais acentuado, ao mesmo tempo que lhe acrescenta uma estética nova, acaba também por lhe conferir uma inesperada complexidade das decisões que as personagens são submetidas. E assim o filme vai oscilando entre o melodrama, o thriller psicológico e um outro drama ainda mais denso.
Desta vez, Farhadi, que sempre assina as suas histórias, remete-nos para uma zona vinícola a norte de Mardid, em Torrelaguna, onde assistimos à chegada de Laura (Penélope Cruz) vinda de Buenos Aires com os filhos para o casamento da irmã (Inma Cuesta). Só que essa reunião familiar acabará abalada pelo desaparecimento da filha Irene (Carla Campra), tal como a todos os convivas, em particular Paco (Javier Bardem), com quem Laura teve um caso no passado, testemunhado pela inscrição das iniciais no claustro na igreja local. Todos o sabem, confidencia a Irene um rapaz enamorado. É então depois deste périplo festivo, onde o iraniano se diverte até a usar um drone, que subitamente lateralizamos a importância para outros elementos. Como se o filme nos motivasse leituras diversas.
Tanto Bardem como Cruz têm aqui uma oportunidade de ouro para se redimirem de trabalhos menores, como Bardem no desonroso The Last Face – A Última Fronteira, de Sean Penn, exibido em competição em 2016, precisamente na mesma edição em que Farhadi recebeu o prémio do melhor guião, em Le Cient, ou em parceria com a esposa no truculento Loving Pablo, onde ambos fazem fraca figura. Ei-los agora a mostrar que esses forma apenas erros de casting e de filmes.
Neste caso, não será exagero falar numa proximidade enganadora ao elemento de telenovela, à medida do elemento mais insólito que une as personagens de Cruz e Bardem, já de si marcadas dessa inevitável carga, que não recusa até um elemento detetivesco, um verdadeiro who dunnit a que não seria alheio o mestre Hitchcock. Razão sublinhada para o tal enxergar mais além neste drama familiar, pleno de segredos e mentiras, embora com uma leitura precisa na direção de cada personagem inevitavelmente presa ao seu destino, mas também a uma necessidade de ajuda que pode ser confundida com interesses vários.
É mais por aqui, por estas subtilezas de carácter, essas verdades que escondem algo mais profundo, que Asghar Farhadi assume e afirma a consistência do seu cinema. Percebemos aliás que é com agrado que aqui regressa aos temas evocados nos seus primeiros filmes, como o mistério em About Elly (2009), conferindo o Urso de Prata, em Berlim a Farhadi como o Melhor Realizador, ou o dilema do casal em Uma Separação (2011), vencedor do Urso de Ouro, no mesmo festival, e o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, num envolvimento singular de personagens que também não é alheio O Passado (2013).
Por isso mesmo, Todos lo Sabemos é um regresso às raízes que tem o seu lado de paradoxal. Pois algo nos diz que temos de ver mais para diante, como de resto faz a família ao visualizar o filme da boda, como forma de deslindar o tal mistério, mesmo quando recorre até às mais acrobáticas imagens do drone. Foi também precisamente nessa procura que encontrámos o cinema mais puro de Farhadi.