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Pai Nosso – Os Últimos Dias de Salazar: O ocaso de um ditador rural

Em Pai Nosso - Os Últimos Dias de Salazar, um dos filmes mais consistentes da Competição Nacional, no IndieLisboa, José Filipe Costa aproxima-se de uma trama shakespeareana onde a máxima autoridade do rei rima com uma total dependência paliativa.

O filme abre a negro, talvez até de luto, embora contextualizados com os sons de Abril nos remetem para a legenda que recua a 1968, à notícia em que António de Oliveira Salazar cai da cadeira e ao posterior AVC que o precipitou a um estado de impotência governativa. Consequentemente, à substituição de Marcello Caetano, como Presidente do Conselho. Entretanto, na residência oficial do Palacete de São Bento, na Lapa, Salazar ia alimentando a ilusão de comandar os destinos do país. Era aí que recebia os cuidados supervisionados pela governanta, Maria de Jesus, que mantinha vivo o sonho ditatorial e a sua própria ditadura doméstica.

José Filipe Costa, um cineasta-investigador com provas dadas na reconstituição e reinterpretação do real, em particular no fascinante A Linha Vermelha (2012), onde opera uma análise profunda às imagens e aos sons do filme de Thomas Harlan, Torre Bela, de 1975, ensaia agora uma reconstituição ficcionada em que propõe a entrada nesse jogo de sombras, onde o ditador não concebe qualquer alternativa ao seu poder. 

Embora adotando aqui uma forma mais narrativa, Pai Nosso não deixa de questionar esses elementos históricos, optando aqui por uma aproximação mais privada, onde o Salazar continua a cavalgar nas ilusões de um império que já não controla, mesmo que permaneça dependente dos cuidados de quatro damas. Aliás, a aproximação teatral não será descabida, pois este Pai Nosso aproxima-se a uma peça de câmara, em que o espaço limitado contrasta com as ambições de uma ilusão demente e quimérica.

Jorge Mota (Salazar) e Catarina Avelar (Maria de Jesus) interpretam as duas facetas deste filme de contrastes.

O filme revela-nos a faceta oculta de Salazar (servido por um consistente Jorge Mota), já não como uma figura imponente, mas revelado como um homem vulnerável, profundamente rural, agora dominado pelas suas ilusões, bem como pela devoção submissa da governanta, Maria de Jesus (a imperial Catarina Avelar), tal como a ajuda paliativa de um trio de criadas (Vera Barreto, Carolina Amaral e Cleia Almeida, respetivamente, Aparecida, Teresinha e Socorro). É aí que se dá um curioso jogo de espelhos, em que Salazar se encarrega, por um lado, de replicar em casa a sua própria ditadura, ao passo que Maria de Jesus vai exercendo o mesmo tipo de autoridade diante as domésticas, esta dinâmica entre os personagens é um dos pontos mais intrigantes, explorando a complexidade das relações de poder nas quais a subserviência se transforma em controlo e onde o máximo poder coincide com a total dependência. 

Nesse sentido, não deixa de ser curiosa a intencionalidade com que José Filipe Costa utiliza o som. Não do ambiente, marcado pelo tempo, bem como por uma atmosfera rural, em que as galinhas assumem uma dimensão surreal que acaba por ampliar o tom de seriedade da cena. Será que para nos dizer que no reverso do poder está quem o apoia? Daí a expressão do oratório ‘Pai Nosso’ a suportar esse lado paternalista apanágio de Oliveira Salazar, nesse Portugal imperial.

Catarina Avelar é suprema na forma como cozinha o perfil dele, ziguezagueando entre a preocupação e a crueldade, entre uma cumplicidade do poder, embora sem deixar de ser vítima dele próprio. A ela dirá Salazar: Proibo-te que morras antes de mim”, como que a sublinhar essa visão de uma lealdade cega. Talvez por isso, ao humanizar a figura de Salazar, José Filipe Costa talvez nos desafie a encarar esse lado rural cuja fraqueza e necessidade de poder se prolongam na sua imagem pública. 

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