Sergei Loznitsa faz uma pausa no documental para regressar à ficção e assim prolongar a sua visão cáustica e acutilante sobre a sociedade russa. Uma Mulher Doce chega finalmente ao nosso país, graças ao empenho criterioso da distribuidora Alambique, mesmo depois da exibição em competição no festival de Cannes de 2017. Toca-nos de forma particular este filme ao mesmo tempo rigoroso e magnífico. Seguramente, uma das grandes estreias deste ano e o aperitivo ideal para nos ajudar a compreender este continente estranho, a par do ciclo ‘Rússia Esse Enigma, Uma Cinematografia de Génio(s)’, promovido pela MediaFilmes.
O cineasta recorre a Dostoievski para evocar o pesadelo de uma mulher anónima e impassível que enfrenta o sistema de modo a perceber a razão porque foi devolvida sem explicação a encomenda enviada para o marido déspota a cumprir pena de prisão. Trata-se de uma variante do seu conto original, em o marido que chora a morte da esposa depois desta ter cometido suicídio como forma de superar a sua devoção. E de que também a adaptação de Robert Bresson, Uma Mulher Meiga, de 1969, é mais próxima.
A prisão é a nossa igreja, dirá o taxista conformado que transporta esta mulher de olhar dorido e impassível quando chega a essa cidade alimentada pelos serviços prisionais. Ela é Vasilina Makovtseva, a força motora deste filme e a atriz que o cineasta encontrou por se assemelhar ao rosto que procurava de acordo com uma fotografia de um projeto antigo e que seguimos ao longo de um calvário kafkiano dominado pelas instituições anquilosadas e rígidas, mas também pela humilhação e agonia. De certa forma, um prolongamento da agonia do camionista de A Minha Alegria, de 2010.
É uma vez mais um registo lento e intenso que gravita quase sempre entre a ficção e o documental num jogo muito eficaz propiciado pela câmara orgânica do colaborador habitual, o moldavo Oleg Mutu (responsável pelo trabalho de câmara da Palma de Ouro 4 Semanas, 3 Meses 2 Dias, de Cristian Mungiu, bem como A Morte do Sr. Lazarescu, de Cristi Puiu ou ainda do mais recente United States of Love, do polaco Tomasz Wasilewski), disposta a acertar-nos o olhar para as diversas subtilezas da narrativa.
Ao fim e ao cabo esta realidade assemelha-se até a uma nação-prisão, a mesma que viveu as sevícias de Stalin, mas que também produziu inúmeros génios, e que ainda hoje confirma a entronização do modelo de exaltação nacional desta Rússia imutável, que Zviagintsev tão também analisou no pungente Leviatã, e feita de de sobreviventes. A tal “Rússia. contemporânea” como Loznitsa refere na nossa entrevista, em que “o passado, presente e futuro não existem. É apenas um presente infinito”.
Esta Via Sacra sintetiza assim o exorcismo de uma sociedade que apenas parece concretizar a ideia de nação dentro de uma temática totalitária. Algo que o filme celebra num final apoteótico bizarro e surrealista que nos acorda para o pesadelo e em que se celebra “o dia da união da prisão” (e não do estado da nação), numa celebração festiva que sentencia o destino desta mulher, e dominada pela figura do líder que parece um mimetismo cruzado entre Stalin e Putin.
Terá sido precisamente esta charge final o motivo dos tímidos assobios proferidos pela imprensa estatal russa presente no festival e que posteriormente fizeram correr o rumor de um filme mal recebido na imprensa local e internacional. Mas não será precisamente essa a Rússia de que fala o magnífico Uma Mulher Doce?