Sergei Loznitsa acrescenta um novo retrato à sua visão amargurada da sociedade russa neste regresso à ficção. Uma Mulher Doce estreia agora, embora tenha concorrido para a Palma de Ouro em Cannes na edição de 2017. Recordamos a nossa conversa com o bielorusso após uma intensa sessão de imprensa de duas horas e meia em que sofremos com a jornada dilacerante desta mulher que parece não pertencer a lado nenhum, mas que representará uma boa fatia da realidade de um país que recusa encarar-se a si próprio e prefere a fusão no coletivo talvez grande demais para cumprir o seu ideal. Talvez por isso, Loznitsa opte por evocar os poetas e os autores clássicos para melhor acentuar a metáfora da nova, mas sempre eterna e imutável, sociedade russa.
É este um regresso à ficção de um homem muito mais habituado a encarar a realidade no documental. Talvez, como ele confirma na nossa conversa, porque esse formato lhe permite concretizar mais rápido as inúmeras ideias que habitam na sua mente. Já depois desta entrevista terminou os filmes Donbass e Victory Day.
Será possível considerar Uma Mulher Doce e A Minha Alegria, de 2010, como filmes companheiros, como um díptico?
Sim, sim. É precisamente assim como eu os vejo. Essa ideia nasceu logo que terminámos A Minha Alegria. Eu disse logo ao meu diretor de fotografia que queria fazer esta viagem com a personagem feminina.
Porque razão as suas personagens não têm nomes?
Não faço ideia. Quando escrevi o guião, pensei apenas numa “mulher”, uma mulher comum. Por outro lado, este é um filme inspirado num romance do Dostoievski e também aí a protagonista não tem nome. É uma mulher incógnita, mas que todos podem encontrar referências reais.
O Dostoievski foi a sua referência principal ou tinha outras? Referências óbvias das obras de outros escritores, como Gogol ou Pushkin…
O Pushkin não. Talvez porque é o mais europeu dos autores clássicos russos. Ou seja, transferiu alguma literatura europeia para o contexto russo. A maior parte destas referências sei bem de onde veio. Não o fiz de forma consciente, foi algo espontâneo. O filme está cheio de citações e referências literárias. Desde logo, Dostoievski, e não apenas em Uma Mulher Doce, mas textos diferentes. Desde logo, O Idiota, porque de certa forma ela é o ‘idiota’, o estranho. Precisava dessa diferença dela e do resto do cenário. Este ‘cenário’ é uma espécie de pântano que a quer engolir.
Podemos ver aqui também algo de Fellini?
(risos) Provavelmente. Como também de Roman Polanski, na cena dos cavalos, e até do Vertigode Hitchcock. Não foi algo que tivesse pensado especificamente, mas surgiu como uma espécie de musgo, um pouco como no lugar onde cresci.
Reparou que o filme teve alguns apupos na sessão de imprensa? Pareceu-lhe vindo de um elemento nacionalista
Refere-se aos russos? Sim, não me pareceu uma reação normal, mas algo organizado. É um grupo de pessoas que deseja esse tipo de reação. E cinco minutos depois era logo referido na imprensa local que o meu filme tinha sido rejeitado e apupado em Cannes.
Acha mesmo que é algo intencional?
Claro. Trata-se de um fenómeno interessante que gera factos alternativos e notícias falsas. Um dia depois, encontram-se textos terríveis sobre o meu filme e sobre mim na imprensa russa. A minha mãe até me ligou, em lágrimas, porque tinha lidos essas notícias e ficou preocupada. É uma guerra que está a decorrer no meu país. O objetivo é muito simples, é criar o patriotismo e unir as pessoas no patriotismo. Apesar de não estarmos a falar do meu filme, isto é muito importante e que não podemos ignorar.
Normalmente, não usa muito atores profissionais. Como foi este exercício de os juntar a profissionais?
Antes de mais, é muito importante escolher os amadores certos. E essa escolha levou vários meses. Em seguida, fizemos ensaios de profissionais com os amadores. E esse momento é obrigatório.
No entanto, todo o filme é baseado no intérprete do papel principal desta atriz, a Vasilina Makovtseva… Ela é fantástica no filme. É muito conhecida na Rússia?
Não, não é nada conhecida. Encontrei-a num teatro em Yekaterinburgo. No fundo, era muito parecida com um rosto que tinha visto em imagens de arquivo num projeto que trabalhei em 1991 em São Petersburgo. Só estava receoso por ela ser tão pequenina e o papel tão grandioso… (risos) Mas quando vi as fotos dela percebi como era diferente das imagens. Ela é incrível, uma verdadeira estrela.
Normalmente, faz documentários. Como se apercebe que chegou a altura de fazer uma ficção?
É quando chega o dinheiro… (risos). Entretanto, termino dois documentários. Um deles (Victory Day) foi rodado no parque Treptow em Berlim durante o dia da Vitória dos Aliados na 2ª GM, quando a Rússia venceu os alemães juntamente com os americanos, para perceber como a celebram em Berlim. Claro que há sentimentos contraditórios. Mas há muitas pessoas que querem comemorar, trazem flores. Pelo meio há diversos freaks políticos de diversas fações políticas e grupos de propaganda. É um mix de manipulação de propaganda e sentimentos genuínos. Isso interessa-me muito, desde logo pela perceção que as pessoas têm do passado. O outro é uma montagem de imagens de arquivo baseado nos julgamentos estalinistas da década de 1920.
Ia mesmo perguntar-lhe se a personagem que vemos na sequência do sonho terá sido inspirada em Estaline?
No fundo, é uma típico guarda de prisão e uma réplica metafórica de vários líderes da União Soviética.
Porque quando fala da contemporânea Rússia usa antes metáforas para fazer da realidade?
Talvez porque não existe uma Rússia contemporânea, antiga ou futurista. O passado, presente e futuro não existem. É apenas um presente infinito. Mas a minha ideia é muito simples. Quis apenas mostrar que o regime que existe hoje em dia foi criado e é defendido por cada um dos cidadãos que lá vivem e que aceitam as coisas como são. Algo que se reflete como tratam as outras pessoas e como vivem o seu dia a dia. É por isso que a última cena é tão importante, porque quis mostrar que cada personagem que conheceu na sua jornada acaba por participar na derradeira humilhação que ela vive. Algo que é sublinhado por cada uma das personagens que conheceu.
Acha que esta narrativa que vem ao longo destes dois filmes terá algum tipo de desenvolvimento ou termina aqui?
Acho que disse tudo o que queria sobre este território. O assunto da nova Rússia está fechado. Mas o meu próximo filme será sobre a situação em Donbass, sobre a possibilidade da guerra neste território. O que posso dizer é que vai ser grotesco. Esta é a palavra como posso descrever o que se passa neste território: é grotesco! Os próximos temas que irei tratar terão lugar no passado. Quando ainda existiam heróis…