Domingo, Dezembro 8, 2024
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Carlos Conceição reflete sobre ‘Serpentário’, o filme que levou ao Fórum em Berlim

“Sabia que tinha de fazer este filme”

Paulo Portugal, Berlim

 

Carlos Conceição estava visivelmente satisfeito. A razão não era para menos. A sua primeira longa metragem Serpentário acabava de ser exibida no Fórum do Festival de Berlim. De resto, esta secção mais vocacionada para um cinema experimental recebera o ano passado outros cineastas portugueses que afirmaram o a vitalidade do seu cinema. A conversa decorreu em bom ritmo no bar Vox do restaurante do Hotel Hyatt, o quartel-general da produção da Berlinale.

“Estou muito contente porque nunca tinha mostrado o filme a ninguém”, confessou o realizador de 39 anos. “Foi tudo feito de uma forma muito privada”. Sim, há quatro anos que o filme estava praticamente acabado, pelo menos desde “o ano em que estreou o Boa Noite Cinderela”, confirma. “Mas o resultado final não mudou muito em relação ao guião original. Só mudou a minha posição em relação a ele.” A verdade é que não só este ‘marinar’ funciona como Conceição confessou também que o seu próximo filme está já acabado. “Sim, é verdade, tenho outro filme já rodado. Estou a fazer pós-produção. Lá está, são filmes que eu me posso dar ao luxo de não ter financiamento institucional. De certa forma consigo retê-los até ter a certeza de que está pronto, que está igual àquilo que eu quero que seja.”

Isto de poder dar-se ao luxo de deixar um filme a respirar não é para todos. “O outro filme está montado mas há qualquer coisa que não está para mim ainda correta. Tal como neste aqui, há um momento em que eu percebo o que isso é e o filme fica pronto em dois dias. Agora não ter a pressão de o acabar, isso sim, não tem preço.”

Na verdade, é mesmo um privilégio poder ter esse distanciamento. E assumindo uma analogia vínica, Conceição prefere “sentir que está sempre ‘meio cheio’. Essa decantação tem a ver com o meu próprio conforto. Saber que está terminado. Por exemplo, ontem na estreia não estava minimamente preocupado, pois tenho a segurança total em relação a este filme.”

Serpentário acompanha uma errância de João Arrais pelo deserto africano, em que se sente uma proximidade de Paris Texas, de Wenders, ou Deserto Vermelho, de Antonioni, embora de certa forma um flirt com géneros, seja a gesta aventureira lusitana ao longo da costa, mas também uma ligação a ficção científica retro ou mesmo western. Western? Sim. “A colonização portuguesa de África foi muito parecida com alguns filmes do faroeste. Do John Ford, do western spaghetti,” elucida João.

Apesar de iniciar este novo percurso no longo formato, Conceição vai avisando que não perdeu o contacto com as curtas. “Se pudesse só fazia curtas metragens. Mas nem todas as ideias servem para curtas. Porque algumas delas precisam de tempo para se instalarem nos sentidos do espetador. Este filme é, de certa forma, uma contradição ao modo de produção com que eu trabalhei nas curtas porque é um filme que é feito apenas por três pessoas.”

Seja como for, “a ideia para esta longa foi muito refletida”, explica-nos. De resto como em tudo o que faz, sobretudo por ser talvez o filme em que mais expõe o seu passado e aponta o rumo para onde quer ir.  “Em primeiro lugar, sempre pensei nos motores que nos levam a fazer um determinado filme. E nunca pode ser uma escolha leviana. É algo sempre extremamente difícil de fazer. Um filme nunca pode partir de um capricho. Dá demasiado trabalho, é demasiado caro. É algo que nos revira as entranhas”, refere.

Naturalmente, Serpentário possui uma ligação umbilical muito forte com a sua família, em particular com a mãe, nascida em Angola, bem como os pais dela. Aliás, Conceição revela logo num crédito inicial que veio ainda jovem para Lisboa apesar da mãe ter ficado em África. “Ela fez essa opção duas vezes”, explica. “Uma a seguir à independência quando toda a família dela foi para Portugal, mas ela e a minha avó ficaram em Angola.”

Por outro lado, para Carlos Conceição “a palavra ‘retornado’ não faz sentido, porque estas pessoas não eram portuguesas, muitas delas nunca tinham vindo a Portugal. A minha mãe nasceu lá. Os meus avós nasceram lá. Eu sou terceira geração,” vai avisando ao Insider. Na verdade, as fotos que se aparecem no final do filme mostram a avó e os bisavós que vieram de Avelar para África em 1905, sendo que a família era oriunda da Andaluzia. “É o que está no filme, a história é verdadeira. Foram primeiro para o Namibe, depois ela não se deu bem com o clima e tiveram de subir a serra para um local que tem um micro clima, o Lobango, onde cresci e chamou-se Sá da Bandeira, antes da independência.”

O que aconteceu foi que“minha mãe e eu viemos para Portugal quanto tinha doze anos. Ela foi fazer o doutoramento (em Piscologia, é psicóloga clínica) na Universidade do Minho.” Só que entre os doze aos dezassete o jovem Conceição criou raízes fortes em Portugal, “algo que nunca mais consegui ter em Angola, ao voltar para lá aos dezoito anos. Até porque nessa altura, no início dos anos 90, que era o acesso à cultura. Poder ir ao cinema, poder comprar discos novos. Em Angola para ter acesso a este género de coisas tinha de esperar não sei quantos meses.”

Depois de essa ausência, o cineasta percebeu que tinha regressar ao país onde nascera. “Parti para o filme sem grandes hesitações porque sabia que tinha de o fazer. Provavelmente, era a grande questão da minha existência. Por outro lado fascinou-me a ideia de que só poderia ser feito assim. Nunca existiria se tivesse um grande financiamento. É um filme que se alimenta das suas próprias limitações. Isso também foi um desafio muito grande para mim.”

Foi também durante essa período em que o cinema foi nascendo e amadurecendo em Carlos Conceição.Desde criança que tinha fascínio com o cinema, até porque os meus pais eram leitores ávidos. Tinha uma biblioteca razoavelmente grande em casa o que facilitou um interesse pela narrativa. desde logo um interesse muito forte pelo cinema francês. A forma como as pessoas se podem exprimir através do cinema sempre foi uma coisa que a mim me obcecou.”

“Pode dizer-se que tenho uma memória muito cinematográfica,” insiste. “Tudo o que está no filme é verdade. Mesmo que não exista registo de certas memórias, da minha avó, por exemplo, há uma idealização das coisas que ela me contava. Sendo que para mim essas narrativas revestem-se sempre de uma formalidade cinematográfica.”

 

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