Sergei Dvortsevoy, o russo nascido no Cazaquistao, demorou uma década entre o arrebatador e luminoso Tulpan, vencedor em 2008 do prémio da secção Un Certain Regard, em Cannes, ao opressivo e obscuro Ayka, que deu o ano passado no mesmo festival ao prémio de interpretação a Samal Yesyamova, uma não atriz cuja experiência se reduz a estes dois trabalhos.
Apesar de um filme ser quase o negativo do outro, sente-se o mesmo traço de uma profunda humanidade. Aliás, algo que vem imprimido no DNS da formação documental de Dvortsevoy, desde logo revelada no assombro vivido em Paradise, em que nos dá, sem comentários, longos planos fixos de cenas da estepe cazaque – uma criança abandonada alimenta-se como pode, um bezerro fica com o focinho preso num balde de leite, uma mulher termina a refeição familiar lambendo as colheres e passando um dedo nas tijelas; em Bread Day, um grupo de homens e mulheres empurra um vagão de comboio que carrega o pão para a venda.
Não interessa tanto perceber porque quirguiz Ayka corre – sim, nesse sentido, ela é Rosetta, uma influência dos Irmãos Dardenne que o próprio realizador assume na nossa entrevista há quase um ano em Cannes -, porque limpa a neve, porque esfola frangos, porque tenta trabalhar numa clínica para cães, seguramente mais bem tratados que grande parte dos emigrantes ilegais à procura de uma possibilidade de sobrevivência na mega metrópole de Moscovo.