A câmara orgânica do russo Dvortsevoy, nascido no Cazaquistão, empurra-nos para uma intimidade que não desejamos ao seguir o frenesim da jovem Ayka depois de escapar da maternidade, onde dera à luz, ainda sem parar a sua hemorragia, na emergência de sobrevivência numa metrópole moscovita gelada e dominada pelos inevitáveis jogos de corrupção e gangs agiotas, tão empenhada com os preparativos para o Mundial de futebol como indiferente à sorte daqueles procuram sobreviver antes de começar a viver. Depois da deriva nas estepes cazaques a correria pelas ruas de Moscovo. Ayka corre ao ritmo do telefone que toca, como um aviso, um alerta ou uma ameaça. Foi também assim que vimos o filme, em permenente angústia, há quase um ano, no derradeiro dia do festival de Cannes. Estreia agora pela mão da Legendmain, seguramente, o filme mais corajoso do momento.
Sergei Dvortsevoy, o russo nascido no Cazaquistao, demorou uma década entre o arrebatador e luminoso Tulpan, vencedor em 2008 do prémio da secção Un Certain Regard, em Cannes, ao opressivo e obscuro Ayka, que deu o ano passado no mesmo festival ao prémio de interpretação a Samal Yesyamova, uma não atriz cuja experiência se reduz a estes dois trabalhos.
Apesar de um filme ser quase o negativo do outro, sente-se o mesmo traço de uma profunda humanidade. Aliás, algo que vem imprimido no DNS da formação documental de Dvortsevoy, desde logo revelada no assombro vivido em Paradise, em que nos dá, sem comentários, longos planos fixos de cenas da estepe cazaque – uma criança abandonada alimenta-se como pode, um bezerro fica com o focinho preso num balde de leite, uma mulher termina a refeição familiar lambendo as colheres e passando um dedo nas tijelas; em Bread Day, um grupo de homens e mulheres empurra um vagão de comboio que carrega o pão para a venda.
Assim é o cinema de Dvortsevoy. Tocante, por vezes brutal, mas também irresistível, como os momentos de euforia em Tulpan, ao som do irresistível Rivers of Babylon, de Boney M e Bobby Farrell, ou a jovem Maya a cantar em plenos pulmões. Mas, no meio destas imagens fortíssimas, estão sempre as pessoas como que a segredar-nos que é isso que verdadeiramente importa. Como sucede no avassalador Ayka.
Não interessa tanto perceber porque quirguiz Ayka corre – sim, nesse sentido, ela é Rosetta, uma influência dos Irmãos Dardenne que o próprio realizador assume na nossa entrevista há quase um ano em Cannes -, porque limpa a neve, porque esfola frangos, porque tenta trabalhar numa clínica para cães, seguramente mais bem tratados que grande parte dos emigrantes ilegais à procura de uma possibilidade de sobrevivência na mega metrópole de Moscovo.