É um Joker bem diferente, este que Joaquin Phoenix compõe no filme homónimo de Todd Phillips. Talvez porque seja uma outra intenção de cinema que se ensaia aqui, claramente de uma evocação retro, ancorada naquilo que se convencionou chamar de Nova Hollywood, ainda que ao mesmo tempo a abrir a porta a futuras incursões.
Não deixa de ser curioso como a escolha da Warner recaiu em Todd Phillips, o homem da trilogia A Ressaca (2009 a 2013), bem como Dias de Loucura (2003)- na verdade, se há algo que une a sua filmografia (tanto como realizador ou produtor) são os títulos que evidenciam esses ‘dias de loucura’. Agora, a loucura do retro-vilão.
O que importa é que a versão dorida de Joaquin Phoenix para este Joker, que sublima mesmo a de Heath Ledger em 2008, vem agora receber o crivo do público após a conquista do Leão de Ouro do festival de Veneza, cada vez mais encarado como um pré-requisito para a celebração dos Óscares, onde de resto a sua prestação no limite da demência deverá assegurar um slot nas nomeações interpretativas. Entretanto, Joker recebeu também o aplauso na 67ª edição do festival de San Sebastian (de resto montra de diversos filmes recentemente exibidos em Veneza), onde foi o filme surpresa a fechar o certame.
Talvez o mais curioso é como na recuperação desta figura central do universo dos super-heróis (da DC Comics) Phillips pretende evocar também um certo paradoxo em que caiu o atual cinema americano, em particular o ‘género’ dos filmes de super-heróis que parecem criados como uma espécie de ‘fast food’ de entretenimento, como que piscando o olho e recuperando o estilo e look do cinema dos anos 70, em que se inventava a tal Nova Hollywood. De resto, um sinal dado já pelo filme de James Franco, Zeroville, também exibido em San Sebastian, claramente a evocar esse período, embora sem conseguir dominar os materiais e acabar por estragar o filme. Do ponto de vista puramente estético diríamos que este Joker bebe nas influências certas – desde logo com o ambiente e niilismo de Taxi Driver, em 1976 (curiosamente, ou talvez não, a ação de Joker desenrola-se no mesmo ano) evocando aquela Nova Iorque já depois da morte de Deus nietzscheana, convenientemente decalcando a aproximação ao ambiente recriado por Martin Scorsese, segundo o romance de Paul Schrader, tal como a aproximação da personagem de Arthur Fleck (Phoenix) à composição que Robert De Niro fez de Travis Bickle.
Talvez aí se abra uma segunda ordem de razões que dominam este Joker– a relação com o pai, ou a ausência do pai -, devidamente suprida pela presença intencional do mesmo De Niro (já a ensaiar O Irlandês?) na personagem do cómico televisivo e na implicação narrativa que terá. Aliás conhecemos Arthur numa crise neurótica, uma espécie de menino adulto ainda a viver com a mãe (Frances Conroy) e sofredor de uma doença crónica (uma espécie de autismo) que o leva a rir de forma involuntária em momentos de maior stress. No fundo, uma gargalhada quando se adivinha o choro.
Foi até ao conhecer esta personagem que nos lembramos imediatamente no filme anterior que víramos em San Sebastian e que acabaria por manter com Joker algumas inesperadas (e insólitas) ligações. Falamos da comédia dramática (talvez logo por aí) francesa Hors Normes (ou Os Especiais) da dupla Olivier Nakache e Éric Toledano (sim os mesmo de Os Intocáveis), que abordam o tema dos casos mais severos de autismo, normalmente rejeitados pela família, e a forma derradeira de como são acolhidos (e tratados) por cuidadores informais – m tema tão em voga atualmente . (no filme, por Vincent Cassel e Reda Keteb).
Arthur, ajuda ter alguém com quem falar?, pergunta-se no filme. É essa personagem, dependente de medicação (e até acompanhada de um cartão para informar o público que o seu riso é involuntário e parte da sua doença), uma personagem carente de ajuda institucional (como as de Os Especiais). Isto antes de entrar em cena o Arkham Asylum, a instituição psiquiátrica de Gotham City de onde têm saído dos vilões da DC – e de onde talvez venha a sai uma esperada sequela de Joker.
É então assim, com um riso que é mais choro que se abre este novo universo de Joker, e se esboça até o nascimento de Batman, destes dias de loucura de Arthur Fleck. Numa bastante competente variante retro, sem ficar a dever ao que Chris Nolan fez com Batman. Esperemos apenas que a necessidade de sequelas da atual Hollywood não transforme tudo de novo em fast entertainment.