‘O Capitão’ revela-nos a história verídica de um alemão desertor que se converte em executor dos seus próprios camaradas. Uma pequena obra-prima de Robert Schwentke, com participação do português Paulo Branco na produção.
O que faz o realizador de Red ou da saga Divergente à frente de um magistral exercício que acorda os mais profundos demónios da nossa memória, em particular do povo germânico? No seu regresso de Hollywood até casa, quinze anos depois, Robert Schwentke desvenda-nos o segredo negro do passado totalitário alemão em que os carrascos nazis no estertor da guerra viraram a génese do Solução Final contra o seu próprio povo. Esta co-produção, que contou com a participação de Paulo Branco, narra a história verídica do soldado nazi Willi Herold, em fuga da Whermacht no final da guerra, que passa de vítima a carrasco depois de assumir a identidade de um capitão morto. De repente, é como se o ovo da serpente olhasse para si próprio.
O Capitão foi o filme que nos marcou logo que o vimos no festival de San Sebastian, em setembro passado, onde ganhou o prémio de melhor fotografia, tornando obrigatório o encontro com o realizador. Onde nos fala também no seu novo projeto, Bad Company, previsto ainda para este ano, que o próprio descreve como uma delirante sátira de Hollywood.
Paulo Portugal, em San Sebastian
O que o levou a abandonar o modo de produção de Hollywood para fazer este filme tão particular sobre um desertor nazi que se converte em carrasco dos seus camaradas de armas? Parece-nos que esta era mesmo uma história que queria contar. É isso?
Sim. Queria fazer um filme na Alemanha que abordasse a dinâmica do totalitarismo, do fascismo.
Um tópico cada vez mais vivo hoje em dia…
É verdade. Veja bem, eu cresci com o mito de que a Wehrmacht, os soldados regulares, não tinham participado no genocídio e que não eram movidos por crenças ideológicas. No fundo, eram apenas soldados profissionais que faziam o seu dever. Só que quando o Muro caiu em 1989 diversos arquivos foram abertos, tanto na Rússia, como Polónia e Hungria, tornando públicas milhares de fotografias tiradas por prisioneiros de Guerra, provando, afinal de contas, que os soldados ordinários, que a Wehrmacht era também culpada de genocídio e homicídio, tal como as SS. Basicamente, estas fotos mostravam soldados comuns a congratularem-se diante de pessoas que tinham enforcado.
Até que ponto esta história em particular era conhecida?
Gosto muito do filme Lacombe Lucien, o Colaboracionista do Louis Malle (1974). E fiquei surpreendido que na Alemanha um filme como esse não exista. Um livro como esse não exista. Existem apenas dois filmes na Alemanha que são contados pela perspetiva dos agressores. Um é Die Wannseekonferenz (1984), onde a Solução Final foi decidida; o outro é a biografia ficcionada de Rudolph Hess, que foi quem dirigiu Auschwitz. Mas essa era apenas a primeira linha de agressores. A mim interessava-me a quinta, a sexta linha. Para muita gente, essa catástrofe cultural entre 1933 e 1945 tinha de ser afastada ou então aprender a viver com ela.
Conhecia está história? Como a encontrou?
Esta história não tem sido contava na Alemanha. Tentei encontrar uma história, muitos dos meus amigos são historiadores, e tenho historiadores na minha família também. Perguntei a todos quantos conhecia se me poderiam ajudar. Até que um amigo meu, que é historiador, apercebeu-se dessa história e alertou-me para ela, que era “aquilo que eu estava à procura”. E era mesmo. Só que eu não sabia como fazer dali um filme.
Um episódio desconhecido de grande parte do povo alemão. O que o levou a avançar?
Existe um livro escrito pelo juiz que presidiu o tribunal penal militar que condenou à morte Herold. Era um juiz inglês que ficou fascinado por este homem que escreveu este livro. Eu não sabia como fazer um filme assim. É algo inédito na Alemanha. Perguntou o que me fez avançar. Queria fazer filmes na Alemanha, queria fazer filmes na Europa. Idealmente, poderia fazer tudo isso, apenas não queria ficar num único lugar.
Levou muito tempo a escrever o guião?
A primeira versão que escrevi de O Capitão foi no Natal anterior a iniciar a rodagem de Red. Veja lá ao tempo que isso foi…
O primeiro Red?
Sim, Red: Perigosos (2010), com o John Malkovich! Se calhar isso é uma desvantagem (risos). Depois da primeira versão apercebi-me que não sabia o suficiente sobre o tema. Li muitos livros de História, sobre Sociologia e Psicologia, apenas para compreender melhor como se teria passado. Isso foi dois anos antes de escrever a minha segunda versão, porque me apercebi que teria ainda muito para explorar. Entretanto, conclui a segunda versão, que é basicamente o que vemos no filme. Fiz algumas alterações, mas este é na verdade o filme que queria fazer.
Até que ponto acha que o publico alemão está preparado para lidar com esta questão? Esta realidade pós Solução Final, mas que acaba por devolver o mesmo tipo de problema e de trauma…
Bom, espero que estejam preparados para lidar com isso. O meu desejo é que o filme inicie um discurso, um diálogo entre as pessoas. Não tem a intenção de ser a palavra final sobre o assunto. Pretende antes ser a sua abertura. Acho que é um filme e um tema que, infelizmente, se tornou de novo muito relevante. E não só na Alemanha. Estaremos nós preparados? Diria que não estão propriamente ansiosos por este filme. No entanto, até agora, estou bastante satisfeito com as reações na Alemanha. E estou muito curioso como o filme vai ser recebido pelos franceses, pelos portugueses, pelos ingleses. Até porque todos estes países têm uma história de totalitarismo.
Devo dizer que este filme me fez recordar O Filho de Saul, embora num sentido reverso. Sendo que é algo que custa a crer, gostava de saber até que ponto estamos vai o realismo e a sua liberdade artística?
O filme é baseado num guião e não num dossier. Deixei de fora algumas coisas porque eram demasiado grandes para o que íamos fazer. Basicamente, é tudo verdade. Mas tudo aquilo que fez foi muito para além das nossas possibilidades. Até porque fizemos o filme com muito pouco dinheiro.
O que foi que alterou da realidade?
Alterei algumas personagens. Por exemplo, o Freytag (um outro desertor que se torna no seu mais fiel adudante) era mais sádico e alcoólico e o capitão Willi Herold verdadeiro era mais histérico, era mais violento de como o mostramos. Mas, por exemplo, todos os telefonemas entre os oficiais que são feitos no filme, tudo isso aconteceu. E quando estão no tribunal reproduzimos tudo o que foi dito. Eles disseram aquilo mesmo.
Falemos então do produtor Paulo Branco. Qual foi o papel dele na produção do filme?
Foi ótimo. Esta é uma co-produção francesa, polaca e alemã. O Paulo Branco era o responsável pela parte francesa e agora faz as vendas internacionais do filme. Mas foi fantástico trabalhar com ele. Aliás, sou um grande fã do trabalho ele. Ele é uma autêntica lenda. Também sou grande fã do Raoul Ruiz, do Oliveira, do Monteiro. Gosto muito desse cinema. Aliás, tenho a caixa do Manoel de Oliveira, onde 22 dos seus filmes são do Paulo. Na verdade, estive recentemente em Lisboa e fui à Fnac comprar filmes portugueses. Entretanto apercebi-me que metade deles haviam sido produzidos pelo Paulo. É incrível.
Como encara esta personagem do Willi Herold?
Ele era uma espécie de Calígula, uma personagem decadente. Nesse sentido foi um desafio tentar encontrar esta personagem. Até porque fazer um filme é um trabalho orgânico, é algo vivo. E o guião tem de ser o mapa.
Estava tudo no guião? Todas aquelas cenas mais macabras (que não iremos aqui relatar)?
Sim, eu tinha essas cenas escritas. Toda a parte do tribunal improvisado, como eles executavam pessoas aleatoriamente. Tudo isso estava escrito. Mas quis esperar para perceber como seria oeste Herold. Porque tudo decorre de forma cronológica.
Senti, por vezes, como se estivesse dentro de um quadro dantesco… Seguiu um estilo visual específico para este filme?
Sempre que a decoração de décors me perguntava como deveria ser determinada cena eu dizia-lhes para verem os quadros do Otto Dix (pintor e gráfico alemão conhecido pelas reproduções rudes e profundamente realistas da sociedade de Weimar e da brutalidade da guerra). Como queria fazer um filme alemão, todas a referências que usei foram alemãs. Não existe nada no filem que venha de outras culturas. Por exemplo, quando vemos todos aqueles esqueletos no final, tudo isso faz parte do romantismo germânico. É Wagner! Para mim era importante ter tudo isso no filme.
Foi também por isso que quis filmar a preto e branco?
Sabe, sou um grande fã Bertold Bercht. E acho que nos esquecemos como era um grande escritor. Gosto em particular da ideia onde por vezes cria uma distância com o espetador e lhes dá tempo para refletir. Nesse sentido, acho que o preto e branco pode transmitir-nos essa distância para que possamos também refletir. Por outro lado, queríamos dar uma certa teatralidade ao filme e como o filmar. E confere-lhe outro nível de abstração. Para ser franco, na maior parte dos casos, a ideia do preto e branco é mesmo para passar ao lado do sangue. De outra forma, tornar-se-ia demasiado difícil de assistir. E eu não sou fã do naturalismo.
Como é que o povo alemão reagiu a essa realidade? Imagino que isso tenha sido uma revelação!
Houve um clamor porque as pessoas acreditavam que a Wehrmacht não era nazi. Tendo crescido com o mito de uma Wehrmacht limpa, é claro que quando pensamos nisto tudo acaba por fazer todo o sentido. Claro que também tinham as mãos sujas. Até porque não existe uma guerra limpa. Só existem guerras. Nenhuma guerra foi enfrentada com justiça. Isso não existe.
Regressando um pouco ao seu trabalho, como foi fazer um filme como Reds? Quase como um parque de diversões?
Eu adoro os atores. Adoto trabalhar com atores, adoro observar os atores. O John (Malkovich) é incrível, a Helen (Mirren) é maravilhosa… É difícil fazer comédia, não é nenhum passeio no parque. É muito difícil obter o tempo certo do humor. Todos foram incríveis, mas foi um filme muito difícil de fazer. Mas para mim também foi ótimo porque não gosto de me repetir, gosto das diferentes tonalidades. Claro que gosto do Bresson, do Tarkovsky, do Buñuel, mas para mim fazer a mesma coisa não seria interessante. Gosto de trabalhar em géneros diferentes, em tons diferentes.
Então, o que está agora a cozinhar?
Acho que vou fazer uma sátira de Hollywood. Chama-se Bad Company. É baseado numa história verídica absolutamente explosiva. É algo verdadeiramente inacreditável. É sobre um bando de produtores que de matam uns aos outros para obterem os direitos para fazer o Cotton Club. É fantástico. É uma farsa.
Uau! É uma história original?
É uma história de não ficção que eu adaptei. Li as 17mil páginas de transcrições, literalmente oito caixas de material. Li tudo, porque continuava a encontrar coisas novas. Adoro esta fase de pesquisa. O filme terá muita droga, música dos anos 80, guerras de sexos, traficantes, egos de realizadores… É mesmo algo fantástico. É uma espécie Golpada Americana (de David O.Russell, em 2013) meets Casino (de Scorsese, em 1995) (risos)… Mas muito divertido.
Em que fase está neste momento?
Está feito, estou num processo de casting. Eu trabalho muito, e adoro escrever. Quando não estou a filmar escrevo imenso. Irei rodar durante a primeira parte de 2018. Tenho pressa, tenho de fazer mais filmes. Não estou a ficar mais novo e ainda só fiz nove filmes. Não é muito.