O cinema da brasileira Carolina Markowicz tem sabido alimentar-se da forma mais criativa dos desvios sociais, das taras religiosas e até da diversidade dos impulsos sexuais sentidos num Brasil profundo. No caso de Pedágio, em estreia nacional, procura-se na religião populista formas de cura para uma ‘resignificação do sexo’.
Essa seiva acabou por alimentar um conjunto de curtas metragens muito consistente, preparando o terreno para a sua tremenda estreia, em longo formato, com o avassalador Carvão, apresentado no festival Cinelatino, em Toulouse, em 2023, onde tivemos a oportunidade de ver o filme. Um choque frontal que acabaria recompensado com o prémio FIPRESCI da crítica internacional. Seis meses mais tarde, descobríamos Pedágio, no festival de San Sebastian, já depois da sua consagração em Toronto, Locarno e com uma carreira festivaleira prolongada no Brasil. Não só pelo festival do Rio onde o trio de atores foi premiado (Maeve Jinkings, Kauã Alvarenga e Aline Marta), mas também pela Mostra de São Paulo. Pelo meio, um registo muito realista, em que a cineasta mas ao mesmo tempo muito complexo, das franjas do Brasil.
Só que a proximidade temporal entre os dois filmes esconde um longo tempo e gestação, incluindo uma pandemia pelo meio, como nos conformou a cineasta, em conversa o ano passado no festival do País Basco.“Na verdade, estes dois filmes estão sendo desenvolvidos há muito tempo, Carvão há cerca de 10 anos e Pedágio há cinco”, como refere a realizadora paulista de 40 anos. “Embora exista aqui um acerto e muitas mudanças. Mas em determinado momento eu ia filmar o Pedágio, pois o dinheiro foi levantado antes. Só que como veio a pandemia e esses filmes inverteram-se de novo”. É claro que durante esse tempo muita coisa aconteceu, do ponto de vista político, social, comportamental. Algo que o filme e o guião foi absorvendo. “No entanto, há essas questões de contração humana, de elasticidade moral que me vão perseguindo”, refere a Marcowicz.
Desde logo, o desenho da personagem feminina, inserida na realidade de Cubatão, no interior do estado de São Paulo, com as suas contradições – tal como em Carvão, “com muitas camadas, mas com integridade”. Sim, concorda a atriz Maeve Jinkings, cuja presença já dominava em Carvão. No fundo, “há várias camadas entre as duas personagens. No caso de Pedágio foram muito próprias do lugar onde estávamos filmando. No interior do estrado de São Paulo, na área rural. Observação de mulheres que vivem aquele ambiente”, refere.
Neste caso, uma mãe que tenta forçar o filho a inverter a sua tendência gay, recorrendo a terapias milagrosas de ‘resignificação sexual’ que ofereciam um reentrar da sexualidade e afastá-lo da sua afirmação nas redes sociais e nos vídeos musicais que vai gravando. Em uma das cenas, os ‘pacientes’ são convidados a moldar um falo ou uma vagina, constantes o desvio apresentado. O jovem visado é Kauã Alvarenga, uma autêntica força da natureza, com apenas 19 anos, que vive a liberdade de expressão sexual da sua geração. “Hoje em diz a geração LGBT está muito bem representada”, confessa-nos com à vontade. “A comunidade LGBT da minha época acho está muito mais foda. Temos deputados transsexuais, em que eu me revejo completamente. Muito mais, em alguns aspetos do que as gerações passadas”, confirme refere na nossa conversa.
Justamente é alvo da intervenção ‘curadora’ de um profissional ‘estrangeiro’ capaz de mudar a consciência sexual através de uma punção de resinificação energética. Um papel que o ator português, Isac Graça assume com a devida inteligência e intensidade, oferecendo à personagem uma inspiração colhida em “em políticos populistas, vendedores da banha da cobra, oradores em Ted Talks. No fundo, um melting pot do populismo”, nas palavras de Isac Graça. Ate porque “a Carol não pretendia o cliché do pastor evangélico”. Intensas as sequência do pastos ‘estrangeiro’ que parece rivaliza bem com Tom Cruise, na sua prestação em Magnólia, de Paul Thomas Anderson, numa prestação que lhe rendeu uma nomeação aos Óscares. Pois a de Graça não lhe fica atrás. Porque tem mais Graça.