Poderemos alguma vez recuperar a inocência perdida, aquela que nos foi roubada? Pergunte-se a Dalva, a protagonista belga que do alto dos seus 12 anos se posiciona como verdadeira adulta em O Amor Segundo Dalva, a estreia em longo formato da jovem Emmanuelle Nicot e apresentado na Semana da Crítica, em Cannes, edição de 2022, devidamente recompensada pelo prémio FIPRESCI, da crítica internacional, a que se juntou o prémio revelação.
Aliás, essa indefinição com que esta criança adulta se nos apresenta persiste durante toda a violenta sequência inicial em que, aparentemente, um casal é separado por uma intervenção brutal. Ela grita, Jacques! Ele, Dalva! Só que ela é a filha menor; ele o pai. E os outros são os agentes que a retiram à força e a remetem a uma instituição de acolhimento. O motivo sabê-lo-emos mais adiante. Ainda que até lá, importe talvez menos essa justificação do que a dúvida que nos permite navegar na dúvida, na possibilidade de afirmação, ou atrevimentos, que o cinema não está habituado brindar-nos. É esse o grande momento do filme – esse espaço de ignorância em que meninos passam por adultos, mesmo que antecipem os fantasmas do costume e concebam um mundo feito à sua medida. De certa forma, um ambiente de algum modo familiar e atravessado na curta L’Arraché, de 2016, sobre adolescentes em lares adotivos.
O estilo está lá e é incontornável. Nem tanto pela nacionalidade belga dos irmãos Dardenne, mas sobretudo pela proximidade de estilo com Rosetta, Palma de Ouro, classe de 1999. A proximidade tem razão de ser, desde logo, pelo dispositivo de mise-en-scène adotado, em redor desta menina – agora com uma Dalva bem mais jovem que Rosetta. A câmara demasiado próxima do seu corpo, como que acentuando todas as dúvidas e interrogações, acentuadas até por tudo aquilo que se diz e faz.
E o que temos então? Já se disse, a afirmação como mulher de Dalva. Ela veste-se com adulta, usa maquilhagem e pinta o cabelo desde os nove anos. Perfeita Zelda Samson, no domínio da arte de conjugar sentimentos. Neste sentido, pode dizer-se que talvez não houvesse filme sem a menina Samson.
Talvez assim se sinta menos criança do que é. Pois, na verdade, essa infância foi-lhe roubada, desde que se iniciou com o próprio pai numa relação entretanto denunciada pelos vizinhos. E é essa maturidade criada à força (e muitas vezes pela força) que se desenvolve durante todo o período da casa de acolhimento, junto de outros com problemas semelhantes e, em particular, com a relação singular com o seu ‘educador’, Jayden (Alexis Maenti). E as dúvidas dissipam-se quando a ouvimos defende que Quando uma mulher ama, deve saber fazer amor, como que a justificar uma existência baseada no nesse aberrante microcosmos familiar.
O Amor Segundo Salva perturba e espicaça-nos pela proximidade a que Nicot se permite aflorar o tema da pedofilia. Algo que não é costume, apesar das várias explorações de um espaço sempre aberto a meditação. Mérito na forma como a realizadora desenha as atribulações desta menina adulta, mas menos quando se percebe que não há espaço para manter esse registo de novidade. Por muito perigoso seja de defender. Mas também é para isso que serve o talento e a ousadia criativa.
Nicot mostrou-se ao mundo. Isso é inegável. Talvez mais pela originalidade e audácia do tratamento do tema, mesmo que as conclusões a que chega não estejam à altura da sua tremenda promessa.