É bom quando reconhecemos e nos sentimos bem com o cinema de um determinado autor. O que se torna particularmente saudável no caso do alemão Christian Petzold, não só porque permite uma comunicação, uma dualidade de perceções com o corpo dos seus trabalhos anteriores, mas igualmente por esse diálogo não se esgotar no visionamento do próprio filme e deixar aberta a porta para eventuais e posteriores interpretações. Ao contrário, talvez, do que sucedeu com o último de Philippe Garrel, Le Sel des Larmes, igualmente exibido em competição na Berlinale. Também ele um autor calhado a trabalhar materiais de proximidade, embora aqui sem explorar demasiado as arestas de um cinema que perdeu alguma frescura. Em ambos, a evolução de uma relação amorosa falhada. No caso de Garrel, talvez a exploração de relações e aquilo que fica quando se vai em frente; em Petzold, a abordagem dos dilemas de uma relação que se torna impossível.
No caso de Undine percebemos essa afinidade próxima com os anteriores Em Trânsito, bem como Phoenix, Barbara e até mesmo Yella, amores impossibilitados por uma dimensão quase mitológica, mas em que conseguimos observar as personagens de uma certa distância, quase como se tivessem uma vida dupla. Ao mesmo tempo, este exercício de reflexão e observação é acompanhado por uma reflexão bem mais ampla, em que Petzold analisa o próprio ser alemão, a mitologia e da política do seu próprio país, e de Berlim em particular. Aliás, no filme explica-se que foi uma cidade construída sobre um pântano, portanto, com tudo aquilo que fica submerso – como o peixe gigante que vive nas águas do rio de Undine – e de que forma o passado se articula com os novos tempos. Um pouco como o passado na RDA de Barbara, a desfiguração de Phoenix.
A tudo isto não será alheia a forma muito particular com que Petzold trabalha com os seus atores. Não é segredo que cada filme é alvo de um exercício próprio de introspeção, em que as personagens se entregam a uma comunhão de ideias, de visionamento de filmes, talvez algo que passe por aquilo que ficou conhecido com a escola de Berlim, em certa medida pelo longo trabalho desenvolvido entre Petzold e o seu frequente colaborador Harun Farocki (desaparecido em 2014).
Ora, pesquisando o significado de Undine percebemos que tem origem numa novella de 1811, precisamente com esse nome, mas que haveria de motivar, em 1938, uma peça de teatro já intitulada Ondine. Para além disso, esse é também o nome de uma doença respiratória que pode manifestar-se durante o sono e parar a respiração. No entanto, é mesmo o mito de Ondine que é explorado diretamente. Aí, uma mulher anfíbia apaixona-se por um homem mas quando ele a trai percebe que o terá de matar e regressar para a água. É esse o pacto de amor.
Paula Beer é Undine, uma historiadora urbana freelance estudiosa da topologia da capital alemã que acaba de ser traída por Johannes. Mas invés de matar o amante decide contrariar a lenda e procurar um outro, Christof (Franz Rogowski).
É neste conto de fadas, tão próximo da Pequena Sereia de Hans Christian Andersen, como das 20 Mil Léguas Submarinas de Julio Verne (ou será que poderemos ver até traços de The Shape of Water?), em que estas figuras fantásticas acalentam a pretensão de ser humanas. É o caso de Undine, que ao decidir seguir em frente depois do seu desenlace, elege a sua música Staying Alive como uma forma de ressuscitar para a vida. Enfim, o tal cinema que se desdobra como um novelo de significados que apetece descobrir.
Todos os Mortos
Tal como em Petzold, há em Todos os Mortos um regresso a um cinema anterior. É o paulista Marco Dutra que regressa à sua cidade, onde fizera o anterior filme de terror, As Boas Maneiras, em parceria com Juliana Rojas, com zombies mesmo, mostrado em Locarno e onde tivemos uma saborosa conversa há cerca de 3 anos.
Agora é um relato de fundo histórico que nos leva ao início do século XX, logo após a abolição da escravatura no Brasil, num registo mais teatral como forma de evitar uma proximidade com a relativamente comum aproximação feita em filmes dessa época, sempre com dificuldade em escapar a um certo registo que mais comum no formato televisivo tão abundantemente trabalhado pela Globo. Só que gradualmente nessa plantação de café dirigida por Isabel (Thaia Perez) vamos percebendo sinais de um presente que vai espreitando cada vez com mais acutilância, sobretudo à medida que se agrava o estado de Ana (Carolina Bianchi) uma das suas filhas mais perturbada deverá ser tratada com um cerimonial africano conduzido pela anterior escrava Iná (Mawusi Tulani). No fundo, um filme que acaba por gritar mais alto para a preservação de um certo cinema de identidade cultural em sério risco, sobretudo pelas recentes decisões de Bolsonaro que dá demonstrou o seu distanciamento por esse tipo de cinema. Pena é que se aposte mais num certo academismo.