Começa hoje a 17ª edição do IndieLisboa, com alguns meses de atraso devido à pandemia, mas de regresso às salas de cinema, mesmo com as adaptações impostas pelas condições de saúde. Abre-se assim uma viagem pelo mundo enquanto muitas fronteiras entre os países continuam fechadas. Os programadores do Indie sempre tentam construir um mapa mais vasto do cinema contemporâneo e independente, não só em Portugal (a competição nacional) como no estrangeiro (a competição internacional). Atenção ainda às diversas secções paralelas dedicadas a todas as idades, interesses e gostos. Este ano até com a possibilidade acrescida do público seguir o festival dado o período de férias. É que nem todos conseguiram sair da cidade, nem todos conseguiram passar ferias fora do país. É por aí que começamos, por uma viagem pelo cinema que se faz no estrangeiro através de uma revista à competição internacional de longas-metragens.
A secção deste ano anda à procura da liberdade e faz um equilíbrio subtil entre o documentário e a ficção. Os documentários são feitos com muita arte enquanto a ficção tenta ser o mais real possível. O programa abre com o filme de dupla luso-suíça Maya Kosa e Sergio da Costa, L’Île aux oiseaux. Imagine-se um filme sobre pássaros, mas, também, sobre humanos. Esta é uma ilha que envolve e não larga, fascina-nos com o seu ritmo, som a sua serenidade. Os realizadores fazem um jogo de duas facetas quando o motivo de gaiolas se transmite para uma sociedade humana que prefere a segurança, a escolha a ilusão da liberdade em vez da própria liberdade.
O filme suíço está em sintonia com A Febre da realizadora brasileira Maya Da-Rin. Um registo que aborda também as questões da libertação: a rotina cansativa, a cadeia de cidades grandes. Maya da-Rin coloca o foco nos representantes dos povos indígenas e trabalha com a ideia a partir das raízes em busca da outra vida voltando às raízes depois de uma viagem longa. O motivo da troca sempre se repete quando a personagem principal troca a farda com o colega no fim dos seus turnos. É uma coisa simbólica como as trocas de identidade. Assim, as personagens estão presas às decisões que precisam de tomar.
Em busca de liberdade estão as personagens dos filmes que vieram da África. Eyimofe de Arie Esiri e Chuko Esiri é uma coprodução Nigéria-EUA. Sair do país, migrar para o outro é um desejo principal das várias personagens. À espera eles escapam da realidade a ver televisão, arranjam passaportes e acham que qualquer preço é bom para realizar o sonho. A vida tem o seu guião e os sonhos continuam sem ser realizados.
O outro filme africano Baamum Nafi vem de Senegal e realizado por Mamadou Dia. É uma nova versão de Romeu e Julieta. O amor entre dois jovens é interdito. O pai da menina é o imã, o pai do rapaz é o irmão do imã. Um dedicou a sua visa a Alá, o outro escolheu o mundo criminoso. Nós vemos pessoas que duvidam, que têm medo, que tentam sair da zona fechada e controlada pelos homens com armas. Mas a única libertação é a morte.
Sobre a literatura faz-nos pensar e o filme de Bas Devos Ghost Tropic (Bélgica-Holanda). É uma viagem noturna por um lado em busca do tempo perdido, por outro lado parecida com a viagem de Ulisses. Uma mulher adormece no autocarro e perde o caminho e descobre a cidade que não conhece. Essa queda da realidade de uma certa forma também continua a ideia da procura de liberdade.
Também à noite acontece mais um filme Barzaj de espanhol Alejandro Salgado. Estamos convidados a umas rochas onde duas pessoas falam sobre a vida. Nem vemos a suas caras. São apenas sombras sem identidade, sem nomes. Duas sombras perdidas ou escondidas na sua solidão dos pensamentos.
Mais um espanhol Luis López Carrasco apresenta El Año del Descubrimiento. O realizador propõe uma viagem histórica para os tempos quando Espanha começou a preparar a zona Expo em Barcelona. Monólogos e confissões que através da montagem se transformam num dialogo bastante atual para Portugal que também sofreu as alterações com o projeto da Expo98. Este puzzle das histórias pessoais mostra que as pessoas ainda estão presas no passado, nas suas memórias que lhes parecem melhores do que o presente.
As lembranças dos espanhóis abandonados pelo país combinam bem com o vídeo diário que faz a personagem do filme belga Victoria. Ele trabalha numa cidade que foi planeada nos anos 60 mas nunca foi acabada. O seu diário cruza-se com os registos dos imigrantes do século XIX. Assim, fazemos uma viagem no tempo, pensamos em necessidade de ser humanos guardar as suas memórias, deixar o seu nome ou na historia ou, pelo menos, raspar numa pedra gigante.
Enquanto a personagem de Victoria usa o seu smartphone o documentário francês Il n’y aura plus de nuit de Eléonor Weber é uma história vista através de uma lente e feita das imagens militares. Alguém sempre está a fazer uma pontaria, controlar a vida dos outros, nega a ideia democrática de liberdade e privacidade. É uma sensação bastante assustadora. No entanto, a realidade habituou-nos ver essas imagens. Para nós é um jogo de consola onde cada vida é desvalorizada porque sempre dá para reiniciar o jogo.
Qualquer reinicio é uma volta para as raízes. A argentina Jazmín López em Si yo fuera invierno mismo cita as obras de Godard, Farocki e Mendieta. Enquanto nos outros filmes todos tentam escapar dos espaços ou sítios fechados, neste as personagens fecham-se numa casa grande para falar de teatro, fazer teatro e filmar. Através de ato criativo acontece a libertação das emoções e das relações que cansam, irritam mas continuam a fazer parte da realidade. É uma liberdade psicológica que afeita a liberdade artística.
Um pouco a parte está uma coprodução russo-americana Babai, um debute de Artem Aisagaliev. O realizador filma os seus familiares e tenta captar a realidade que se vê pelos dois irmãos. A câmara colocada na altura dos meninos destaca alguns fragmentos da vida: as mãos, os pés, as costas dos outros, os diálogos dos adultos. Esses pormenores é que criam uma personalidade, criam um mundo pouco agradável, cinzento e sem qualquer tipo de futuro. É uma realidade de qual não é possível escapar. Como não é possível escapar do mundo kafkiano onde realidade e ficção misturam-se e fazem parte uma da outra.
Impossibilidade de escapar e o lado mítico encontramos também no filme de outro espanhol, o galego Lois Patiño, com Lúa Vermella. Este documentário que começa com uma imagem do mapa de navegadores convide-nos explorar o fundo do mar. O filme aborda o tema da morte e da memória. As pessoas que vivem ao lado do mar acreditam em poder da Lua e em monstros que moram nas águas. Aqueles que procuram liberdade desses superstições ficam de castigo. Não há maneira nenhum de se libertar, só continuar debaixo da luz da lua vermelha.
O programa do IndieLisboa este ano é muito comum com a situação política no mundo. A pandemia que nos fez sentir a necessidade de sair do nosso lugar, a falta da mobilidade. Os conflitos militares e guerras que acontecem permanente e lançam a sensação de algo monstruoso. O fanatismo que tem a sociedade em defender as suas ideias e sufocar as dos outros. Tudo isto tem a ver com a falta da Liberdade. E os cineastas, entre os outros artistas, andam a sua procura.