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Abel Ferrara: “O Pasolini era um hippie”

(entrevista publicada em 2015)

Abel Ferrara é um velho conhecido. Temos-lhe seguido o rasto desde que prenunciou o apocalipse em 4.44 O Fim do Mundo, há cerca de três anos e meio, em Veneza, testemunhando depois o documento incendiário Welcome to New York, em Cannes, motivando a interpretação livre do “affaire” Strauss-Kahn, com um Gérard Depardieu “bigger than life”, e acompanhando as suas passagens por Portugal, sempre a convite do Lisbon & Estoril Film Festival, onde apresentou recentemente a sua visão sobre o último dia na vida do carismático realizador italiano Pier Paolo Pasolini.

Um projeto há muito acalentado por este nova-iorquino de gema, mas cuja costela italiana há muito o puxava para invocar um cineasta paisano que muito influenciou o início da sua carreira. Na verdade, o jovem Ferrara admitiu que só passou a encarar o cinema com olhos de ver depois de se deslumbrar com Decameron (1971). Tinha Abel 20 anos. O último reencontro ocorreu durante o festival de San Sebastián, onde Ferrara se deslocou para promover o filme. E onde assumiu a sua herança paisana, mas sem que para isso abdicasse do feroz sotaque do Bronx. Mesmo quando se refere a… Manoel de Oliveira.

Há quanto tempo gravitava na sua mente este projeto sobre Pasolini?

Era algo em que pensava há talvez vinte anos. Acho que logo a seguir a O Rei de Nova Iorque (1990). Na verdade sempre quis fazer um filme sobre Pasolini. Mas a ideia de fazer um filme biográfico teria sempre de passar pelo conjunto de documentários que foram feitos para investigar e reunir as minhas ferramentas. Foi a partir dessa perspetiva que nos aproximamos no universo de Strauss Kahn (que originou no polémico Welcome to New York apresentado no passado festival de Cannes) e até da inspiração para este Pasolini.

Por acaso não tinha pensado de imediato nessa relação… Entende então que existem pontos de contacto entre Pasolini e Welcome to New York?

Sim, claro. Ambos os filmes começaram de um ponto de vista documental, embora sejam ficções. Os dois. Para mim a pesquisa é imperativa. Par os atores não sei. Para o Gérard talvez não tanto, mas para o Willem sim, claro. Para o filme do Strauss-Kahn usámos os eventos, mas sabíamos que não estávamos a fazer um documentário, nem sequer uma investigação. Ambos partem de pessoas que não conhecemos e que se inserem em eventos que acabam por ter uma ressonância temporal. Existe claramente um paralelo entre estes dois filmes.

A escolha de Willem Dafoe para incarnar a persona de Pasolini parece-me evidente. Mas a opção de falar inglês foi decidida logo no início?

São sempre escolhas práticas. Não fui eu que escolhi o Willem. Escolhemo-nos aos dois. Decidimos em conjunto fazer este filme. Poderia tê-lo filmado em língua italiana. Aliás, o Willem fala muito melhor italiano do que eu. Mas eu preciso de ouvir as ideias dele em inglês. E que diferença faz a linguagem? Não deixamos de ler Dostoiewski por não sabermos russo. A linguagem é a forma e exprimir as ideias. O filme é em francês, italiano e inglês.

Existe uma multiplicidade de descrições mais ou menos polémicas sobre a figura de Pasolini. Como é que o Abel o descreveria?

Isso talvez seja verdade, mas também nunca ouvi ninguém dizer mal dele. Isso diz alguma coisa sobre a vida dele e a forma como vivia. O meu respeito pelo Pier Paolo cresceu ao longo dos tempos. Começou quando vi os seus filmes. Tinha vinte anos quando vi Decameron. Para mim, este jovem realizador acabou por ser decisivo na forma como passei a encarar o cinema. Isto apesar de viver na América e não saber muito da dinâmica deste italiano. Ainda por cima morreu dessa forma trágica. Eu só vi Saló ou os 120 Dias de Sodoma depois dele morrer. Foi chocante.

Até que ponto este cineasta italiano o levou a estreitar os laços da sua própria herança italiana?

Eu pertenço ao tipo de família que o Pasolini amava. Eram gente do campo, nada intelectuais. O meu avô sabia ler e escrever, por isso estava um pouco adiante do resto da comunidade. Veio para a América com vinte anos, em 1900. Viveu até aos 96 e nunca falou uma palavra de inglês. Passou a vida a falar o dialeto napolitano, recriando o ambiente da Campangna (província de Salerno) e do Paese (comuna da região do Veneto). Ele vivia em Ab Sarno, uma província de Salerno perto de Nápoles. O meu avô era o tipo de pessoa que o Pasolini adorava. Mas também fez a emigração para Nova Iorque e aí se aburguesou. À sua maneira, claro.

Porque acha que o Pasolini continua a ser uma figura tão controversa em Itália?

Ele não é controverso. O Pasolini é um grande cineasta. E acho que o seu trabalho torna-se cada vez mais forte à medida que o tempo passa. Ele é um grande escritor, um jornalista, um poeta. É tudo isso e ainda um realizador. Foi ativista político e um homossexual assumido – um dos primeiros a assumir-se. Isto em 1975, com todo o poder do Vaticano em vigor. Por tudo isso, a sua coragem é tremenda. Ele era um hippie, contra todas as convenções. Será que isso o torna controverso? Sim, claro. À medida que a sociedade se tornava mais repressiva ele tornava-se mais radical. Mas para mim ele não é um radical, trata-se apenas de um talento brilhante a viver a vida ao máximo.

A luz que usa, o claro escuro, e muito significativa dessa época. Foi, nesse sentido uma homenagem a esse período do cinema?

Eu apenas usei a minha equipa italiana. E eles trabalharam com os técnicos dele. No fundo, seguiram a mesma tradição fotográfica. Tanto o Decameron como o Saló são belos exemplos de um trabalho de artesãos que criaram uma industria a seguir à guerra e que atingiu o auge em 1975. A tragédia é que tudo acabou quando ele morreu. Talvez com a exeção do Bertolucci.

Como visualizou este projeto antes de o filmar?

Eu sabia que iria fazer um filme sobre um dia na vida de Pasolini. Não sei se foi algo que evoluiu de 4:44 Último Dia na Terra (cuja ação decorre também num único dia), mas sabia que a estrutura seria apenas de um dia. Tudo se passa em Roma, com as pessoas que ele encontrou. O dono do restaurante onde ele jantou ainda lá está; a mulher que cozinhou o macarrão ainda lá está; as mesas ainda lá estão, bem como as ruas de Roma. Até porque Roma não mudou mesmo depois de 40 anos. Essa é uma grande vantagem. Essa é a tragédia, pois ele ainda poderia estar vivo. Como o seu realizador português, como é que ele se chama…

O Manoel de Oliveira, que tem 106 e continua a filmar…

O Pasolini seria como o Oliveira. Imagine então o que se perdeu!… A tragédia é ele ter partido. É claro que a vida que ele levava conduziu-o também ao seu fim.

 

Entrevista originalmente publicada no site c7nema – em 2/1/2015

 

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