Passarinhos e Passarões abre o programa Pasolini Revisitado na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Com a presença de Ninetto Davoli.
A evocação centenária de Pier Paolo Pasolini na Festa do Cinema Italiano nunca poderia ser menos do que um evento à medida da grandeza de um dos cineastas que melhor soube cruzar a poesia nas suas imagens. E com uma proximidade inigualável – chamemos-lhe amor – às suas personagens. Algo que motivou o filósofo francês Georges Didi-Huberman a afirmar que Pasolini era o cineasta que melhor sabia mostrar os seus figurantes. Talvez para contrastar com aquele tal cinema made in Hollywood, mas calhado em ilustrar massas de gente cuja única função é servir e iluminar o astro. Serve esta pequena introdução para acentuar precisamente esse olhar sobre o outro, sobretudo o desafortunado, que constantemente alimenta o cinema de Pasolini.
Foi precisamente após a enorme aclamação do realismo de Il Vangello Secondo Matteo, multipremiado no Festival de Veneza, em 1964, (Grande Prémio do Juri, prémio OCIC e vários outros depois numa carreira triunfal) que Pasolini sentiu uma crise de esgotamento intelectual, o “doloroso vazio por tudo o que no Evangelho se libertou”, nas palavras citadas por João Bénard da Costa, na folha de sala a propósito de Passarinhos e Passarões (Uccellacci e Uccellini), o filme escolhido para abrir este verdadeiro Amarcrod pasoliniano que revisita a obra do cineasta nascido em Bolonha, a 5 de março de 1922 (e assassinado a 2 de novembro de 1975, em Óstia, nos arredores de Roma).Oportunidade única para aplaudir a presença de Ninetto Davoli, actor descoberto por Pasolini, precisamente neste filme, apesar de uma participação ‘não creditada’ no Evangelho, e uma presença constante no seu cinema – e até na sua morte, pois foi ele quem veio reconhecer o corpo mutilado em Óstia.
Esta retrospectiva está à medida da renovada urgência e vitalidade que o cinema de Pier Paolo Pasolini nos merece (depois da exibição da trilogia da Vida – Decameron, Os Contos de Canterbury e As Mil e Uma Noites, no cinema Nimas, em Lisboa, e no Teatro Campo Alegre, no Porto), completada agora com este Pasolini Revisitado, em mais uma colaboração da Festa com a Cinemateca, que assim regressa ao filho pródigo italiano, após um vasto ciclo que lhe dedicou em 2006. Devido a essa relativa proximidade, opta-se por uma abordagem de contornos diversos, incluindo filmes nos quais Pasolini colaborou, não enquanto realizador, mas como argumentista, produtor, actor ou até inspirador (como sucede em Una vita violenta). Além disso, uma evocação do autor em diversos filmes que provocaram influências em outros, muitos deles inéditos em Portugal. Naturalmente, este regresso não se poderia fazer sem a presença de muitos dos filmes que marcaram a sua carreira (e a vida de muitos de nós). Mas voltemos aos Passarinhos e Passarões…
Descubra-se ou reveja-se, esta fábula mágica e musical, datada de 1965, permite-nos constatar a tremenda liberdade criativa que Pasolini impôs mediante a sua ousadia impulsionada pela verve poética e, lá está, o amor, pelo outro. Onde vimos (se é que alguma vez vimos!) um genérico cantado, contagiante, que nos introduz nesta narrativa efabulada, acompanhando estrada fora os inocentes Totó e Ninetto, depois acompanhados pelo insólito corvo falante . É então no reino da comédia e do musical non sense (sim, os Monty Python poderiam passar por aqui), com um tom que não rejeita a Flauta Mágica, de Mozart, como terá assumido o autor, como forma de superar a sua “terrível amargura”.
Ao longo desta poética que não deixa também de evocar a própria história de Itália, o ‘milagre italiano’, que é também pensar na passagem do neo-realismo para esse novo cinema apostado na comédia, o clown Totó já lá está, a prostituta, mas sem descurar a virulência marxista que até os excessos que estariam para vir em Saló.
Sim, Uccelacci pode ter sido um filme feito em estado de letargia criativa, mas não deixa de elevar ao mais alto grau a alquimia cinematográfica? Seguramente, o melhor aperitivo para estas comemorações pasolinianas, que se estendem, entretanto, a um encontro entre Ninetto Davoli e Isabel Ruth, que teve uma pequena participação em Rei Édipo (1967), ainda a viver em pleno os ‘verdes anos’ do Cinema Novo português. Como dizia, José Manuel Costa, na abertura desta sessão, citando de cor, é preciso voltar a redescobrir Pasolini, nem que seja para confirmar a sua extrema actualidade.
Pode consultar aqui o ciclo que decorre na Cinemateca.