Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.
(Alexandre O’Neill, in Meditação na Pastelaria)
Percebe-se logo ao que João Botelho vem, pelas imagens iniciais de Um Filme em Forma de Assim. E é ao cinema que vem. Ao grande cinema português e à grande literatura portuguesa. A abertura deslumbra-nos pelo sensual exercício de estilo de câmara, à boa maneira de Minnelli ou Stanley Donen, em A Serenata à Chuva. E sabe-se como Botelho gosta de música e de dança. Não só a dança da câmara, como a dança física, de resto sublinhada pelo tecno na cena a fechar. Por tudo isso, e não só, este é também um dos melhores filmes de Botelho. Do Botelho que gosta dos melhores autores portugueses e dos quais fez jus com um dispositivo de cinema em estúdio de grande nível, como em Os Maias – Cenas da Vida (2014), em que usou a mesma cenografia das telas pintadas por João Queirós, mas também o Filme do Desassossego (2010), justamente sobre Pessoa. Ou até o muito exigente Peregrinação (2017) sobre a deriva imagética de Fernão Mendes Pinto. Agora, felizmente, com Alexandre O’Neill, a combinar a verve da palavra com a dramaturgia e um irrepreensível trabalho de actores, em mais uma exemplar produção de Alexandre Oliveira. Sempre com Pedro Lacerda (perfeito como Alexandre) e Cláudio da Silva (perfeito como o fotógrafo).
Na pequena entrevista que nos concedeu, Botelho haveria de agradecer (imenso) o facto de O’Neill lhe ter ‘oferecido’ o título do filme Um Adeus Português, em 1986, no artigo publicado no jornal. Mesmo sem o ter conhecido directamente. No entanto, percebe-se que há muito do surrealismo de O’Neill em Botelho. Foi também ele que confessou as ideias ‘roubadas’ a Buñuel, mas também o efeito da poesia de O’Neill “que não se corta”, como que a justificar os seus gloriosos planos sequência que consolidam a estrutura fílmica deste filme absolutamente provocador e, naturalmente, delicioso.
Foi um filme feito em total liberdade, garantiu João Botelho na apresentação que fez no S.Jorge, durante O IndieLisboa, com o palco inundado pela sua equipa técnica. O tal ‘divertimento em tempo de pandemia’. Agradecemos, por isso, as condicionantes que juntaram a trupe de Botelho e do produtor Alexandre Oliveira num hangar (que já usaram outras vezes) onde Lisboa acontece pela virtude do cinema. Pois percebe-se que foi aí, com o condicionamento de meios, que o autor se concentrou na essência (das palavras de O’Neill) para deixar que o cinema acontecesse.
É nessa forma que nos escapa – vá, uma forma ‘assim’ – que revela o ‘fazer’, o crescimento do cinema. O tal filme libertário (ou libertino) com uma forma assim, digamos… de ‘coiso’. Ou seja, uma espécie cadáver esquisito, com ‘nada na manga, mas algo na virilha’!
Na pequena entrevista que nos concedeu, Botelho referiu ainda que “nunca irá morrer”. Ou, pelo menos, irá desfeitear Manoel de Oliveira. “Se ele morreu aos 106, eu morro aos 107, pelo menos”. É isso.