Poderia ser quase um showcase alternativo no festival relatando as realidades do conflito Ucrânia-Rússia. De Mariupolis 2 a Klondike; de Reflection a Butterfly Vision. Passando, naturalmente, pela única produção russa Captain Volkonogov Escaped e pelo documento Mr.Landsbergis, de Sergei Loznitsa. De citar também a presença do cineasta Myroslav Slaboshpitskyi, presente apenas na qualidade de membro do júri, que tivemos a oportunidade de entrevistar.
Era inevitável que o mais importante festival da Europa central reflectisse parte do inacreditável mundo novo em que vivemos. Desde a invasão russa na Ucrânia, o mundo reparou que vivia a adaptação de uma ficção de série B pré-apocalíptica. E que a cada minuto somos acordados para os factos desta realidade dominada por um discurso que nos remete para tempos que julgávamos esquecidos para sempre. Seguimos um grupo de cineastas ucranianos presentes no KVIFF e percebemos a coerência das narrativas de verdadeiros heróis que se levantam da guerra num conjunto muito significativo de filmes apresentado na secção Horizontes (e não só).
É um pouco como a câmara observacional do lituano Mantas Kvedaravicius, sempre à espera de perceber onde vai cair o próximo rocket russo em Mariupol 2, esse filme que não chegou a acabar por ele próprio ter sido uma das vítimas deste conflito. Ele que voltara para fazer a sequela do filme do mesmo nome em que testemunhara quando se iniciaram os conflitos com os separatistas na cidade portuária de Mariupol. Aliás, a estreia mundial em Cannes só existiu porque a sua viúva Hanna Bilobrova terminou a montagem. É um documento de espera, de paciência. Que nos prepara para a inevitabilidade do que já sabemos.
Em Klondike, reconhecemos a mesma atitude de espera com a mirada para o horizonte e a escuta alerta, até porque se desenrola no mesmo período (neste caso Julho de 2014), pouco depois de ter sido abatido o avião da Malásia na região do Donbass. Só que a realizadora Maryna Er Gorbach embrenha-se(nos) numa potente ideia de cinema, dominada por um ambiente de western, com a inesperada recordação a Ford e Hawks. É a paisagem dos campos, e a vida nesse ‘rancho’ gerido pela grávida Maryna (Oxana Cherkashyna). E esse magnífico ponto de vista do interior para o exterior (aquela porta aberta em A Desaparecida), embora aqui com o buraco que um rocket abriu na sala. É também o conflito interior (como no Rio Bravo de Hawks) entre o irmão ucraniano e o cunhado separatista; no exterior, as movimentações hostis que se aproximam.
A história mantém-se ainda em 2014 no impressionante filme de Valentyn Vasjanovyc, mas aproxima-nos já do stress pós-traumático daqueles que foram capturados e torturados pelas forças pós-russas, em Reflection. Bem como o procedimento de eliminar os corpos das vítimas, incinerados num forno móvel equipado num inocente carro de ‘ajuda humanitária russa.
Já o ponto de vista de Maksym Nakonecnyi eleva-se às alturas, em Butterfly Vision para ilustrar o mundo da soldado Lilia (Rita Burkovska). Um filme que acentua também o lado feminino do conflito, mas também da tortura, evidenciado através de uma operadora de drones que regressa do cativeiro na sequência de uma troca de prisioneiros, acabando por descobrir que ficou grávida na sequência de uma violação. Mas acaba por ser esse ponto de vista, mais alargado no monitor que observa, a superar qualquer papel de vítima.
Apesar de criticado pela delegação ucraniana, a presença da única produção russa acaba por ser ela própria a sublinhar o mind set e a origem do poder das autoridades políticas, em Captain Volkonogov Escaped, da dupla Natasha Merkulovae Aleksey Chupov, ao colocar o dedo na ferida no terror e nas purgas promovidas pela ditadura de Stalin. Volkonogov (em mais uma robusta interpretação de Yuri Borisov) faz parte de uma das brigadas que elimina os inimigos do Estado, mas que se arrepende e procura um caminho de redenção.
É também numa evocação do passado que Sergei Loznitsa oferece em Mr. Landsbergis um robusto documentário de 248 minutos sobre o político lituano Vytautas Landsbergis que vai recordando, entre sorrisos, durante a entrevista com o realizador todo o processo, devidamente documentado com imagens de arquivo, entre 1988 e 1991, do caminho para a ruptura da Lituânia fora do jugo soviético e, em parte, o desmembramento da própria URSS. É um documento cujas reações do passado nos ajudam a explicar o comportamento da mentalidade russa de hoje.
Mesmo que abordando uma realidade diferente – a corrupção endémica na Eslováquia -, o valioso e objectivo documentário The Killing of a Journalist, exibido na secção special screenings, lança a suspeita pela actividade dos oligarcas na sociedade. No caso, o envolvimento directo na morte do jornalista Ján Kuciak e da sua noiva pela mafia local. Esta co-produção dinamarquesa ilustra bem essas ligações tentaculares, num processo devidamente detalhado com inúmeros elementos de prova que colocaram a nu o envolvimento corrupto das principais figuras do estado e da justiça. Infelizmente, são estes os elementos de ficção que fazem parte de uma realidade cade vez menos credível.