Quarta-feira, Outubro 9, 2024
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André Guiomar: “Ainda hoje me pergunto como sobrevivem as produtoras de cinema em Portugal”

‘A Nossa Terra, o Nosso Altar’, o documentário sobre a destruição do Bairro do Aleixo, estreia esta semana no Porto (Trindade) e Coimbra (Casa do Cinema).

Não é todos os dias que um jovem cineasta e produtor vê um filme seu chegar às salas. Não as salas de casa lá de casa, mas verdadeiras ‘salas’ – as de cinema. Muito menos, um documentário. Pois, no caso do André Guiomar, a coisa fez-se. Ou seja, A Nossa Terra, o Nosso Altar, o filme-documento, produzido pela portuense Olhar de Ulisses, em co-produção com a Cimbalino Filmes, sobre a demolição inevitável do Aleixo, um bairro considerado perigoso e mandado demolir por Rui Rio, e a demolição interior que provocou nos seus condóminos. É esse processo, de forte perturbação social, que Guiomar acompanhou, e que terá as portas abertas em duas salas: uma o Cinema Trindade, no Porto, e a outra na Casa do Cinema, em Coimbra. Infelizmente, não em Lisboa, que, como confirma André Guiomar, “se pôs imediatamente de fora”.

A nossa conversa (via email) propiciou-se, não só pelos méritos próprios do filme, mas também pelo trabalho (de realização e produção) de André Guiomar, que ainda recentemente teve duas curtas exibidas da secção competitiva do Curtas Vila do Conde:  Saturno, em co-realização com Luís Costa, em que o desespero dilacerado de um casal (o não-actor ‘Caveirinha’ e Ana Moreira) comunica até com o dos inquilinos do Aleixo; além disso, o seu trabalho de produção em Aos Dezasseis, de Carlos Lobo, vencedor do prémio de realização, já depois de ter presente no passado festival de Berlim.

Zé da Bina olha tem esperança o futuro no Aleixo.

Imagino que para qualquer realizador, o dia em que um filme estreia em sala seja marcante. Mesmo quando é, como no caso do A Nossa Terra, o Nosso Altar, um filme com data de 2020, embora já bastante viajado em diversos festivais e com vários prémios. Ainda assim, a estreia em sala será sempre uma vitória, certo?

Sim, será um dia de várias vitórias, mas com algumas derrotas pelo meio. As vitórias são sobretudo relacionadas com a chegada finalmente ao formato de exibição para o qual trabalhamos tantos anos: a projecção em sala. E por haver uma distribuidora (a Nitrato, de Américo Santos) que acredita no filme, naquilo que ele representa e no alcance que ele pode ter.

Fica o sabor da meia derrota quanto ao número de salas disponíveis para exibir um documentário português, passado no Porto. Quero com isto dizer que Lisboa se pôs imediatamente de fora. E isso será sempre um sinal menos bom. Mas, no final, quem decide o que quer ver é o público (aquele que consegue chegar às salas) numa altura em que os cinemas têm tantas dificuldades em tirar pessoas de casa, quando estas têm centenas de opções na sua televisão ou computador. Vamos ver como corre.

Como foi o ponto de partida para este projecto que acabou por ser a tua primeira longa? Sendo que teve uma longa interrupção (em que várias coisas aconteceram)?

O ponto de partida surgiu de uma participação minha e da Cimbalino Filmes no filme Bicicleta, do Luís Vieira Campos. Os filmes são sempre portas abertas para a vida das pessoas e o trabalho que o Luís já tinha feito com a comunidade era espantoso e de muito valor. Quando pude conhecer o bairro por dentro, achei que havia uma urgência muito grande em documentar aqueles últimos meses (em 2013 tinham sido demolidas duas das cinco torres do bairro e estavam programadas serem demolidas as restantes 3 num par de meses). Vendo a dor daquelas pessoas em ver o Aleixo com quase quatro décadas a desaparecer, o seu sentido de comunidade e ligação profunda a um lugar, as suas características e maneiras de ser que faziam daquele terreno um lugar único, decidi começar de imediato a filmar e a Cimbalino Filmes entrou no projecto sem hesitação nem entraves. Naquela altura, a ânsia era filmar tudo, todos os lugares, todas as pessoas, sem termos tempo para pensar demasiado na narrativa de imediato porque tínhamos de ganhar a confiança e amizade das várias famílias que íamos documentando. Precisávamos filmar e continuar a filmar.

A Nossa Terra, O Nosso Altar

Mas, seis meses depois, fomos filmar a passagem de ano de 2013 para 2014 e reuni com a equipa pouco depois. Percebemos que tínhamos de parar e aguardar, tal como os habitantes, pelas cartas de despejo que faltavam para as famílias que ainda habitavam o bairro. O processo de demolição tinha claramente entrado numa fase de suspensão, tal como aquela comunidade. E, por isso, viramos as nossas vidas profissionais para outros percursos. Eu cheguei a estar três anos e meio em Moçambique com muitos outros projectos, mas sempre atento, à espera de uma notícia ou de um telefonema para me avisar que uma carta tinha chegado.

Curiosamente, quando decidi regressar a Portugal, em 2019, foi quando começaram a sair notícias de que as restantes torres do Bairro do Aleixo iriam ser destruídas. Assim, seis anos depois, começaram a chegar as cartas e nós estávamos lá, preparados para continuar o filme, um filme diferente, com pessoas ainda mais cansadas e sem forças, num bairro que já não parecia o mesmo de 2013.

Recentemente, exibiste a tua nova curta, Saturno, no Curtas Vila do Conde, onde se percebe uma vez mais a atenção dada às personagens, ao seu espaço, neste caso, o espaço de ficção. Consideras que é ainda um trabalho de exploração das potencialidades da imagem e do teu próprio olhar?

A minha formação vem principalmente da imagem, uma área onde muitas vezes trabalho. Por isso, mesmo não sendo director de fotografia deste projecto, é sempre uma preocupação prioritária para mim. Este projecto foi especial porque foi uma co-realização com o Luís Costa, realizador que também tem uma marca muito forte no seu cinema na linguagem visual. Mas entregamos a responsabilidade principal da imagem às pessoas em que mais confiamos: o Miguel da Santa e o Tiago Carvalho. E a forma visual do filme nasceu com muita naturalidade, pelas referências que partilhamos mas sobretudo pela experiência que temos todos em conjunto.

Sente-se até uma ligação entre a dor destes personagens e a dos do Aleixo.

O filme Saturno é inteiramente baseado na narrativa pessoal do Caveirinha e em aspectos, trejeitos e histórias que fomos ouvindo e aprendendo durante a estadia prolongada no Bairro do Aleixo. Sendo o Caveirinha um não actor, seria uma grande responsabilidade colocar-lhe nos ombros todo o peso de um protagonista. Por isso, decidimos contrabalança-lo com a Ana Moreira, que sabíamos ser exímia não só no que faz como actriz como numa relação de entreajuda com uma pessoa como o Caveirinha. E o que tivemos foi realmente uma dupla magnífica, que nos deu sempre mais do que aquilo que nós conseguíamos pedir, e que inclusive acabaram por moldar de tal forma os seus personagens que aquilo que no argumento era um casal distante, com opiniões diferentes no que fazer para enterrar com dignidade o seu filho, acaba por se tornar um casal cheio de empatia e entendimentos silenciosos no meio daquela dor agonizante.

Parece-me, olhando o teu cinema, que existe algo de muito particular entre a câmara e as personagens que escolhes filmar. Há uma relação muito próxima, e ao longo de vários filmes: sejam os habitantes do Aleixo (personagens muito fortes), Pele de Luz ou até as personagens de Saturno, a tua nova curta. Qual é o ponto de vista do lado do realizador? Há também um lado de identidade?

Não me considerando propriamente uma pessoa com um grande nível criativo no imediato, agrada-me ter tempo e muitas histórias à minha disposição para poder trabalhá-las. Para isso, tivemos de optar por ter uma equipa o mais pequena possível (eu como realizador e câmara, o Dinis no som e a Mafalda na produção). Assim, conseguimos filmar muito mais tempo, e conseguimos “encaixar-nos” em qualquer espaço, interior ou exterior, e sobretudo construirmos fortes relações com as pessoas. A comunidade está a atravessar provavelmente um dos momentos mais difíceis das suas vidas e nós estamos ali, a fazer-lhes companhia nessa altura com uma câmara, um tripé e um microfone. Isto ganha-se, é preciso muito tempo e cumplicidade. A escolha da equipa é essencial para isto. Muito mais do que o talento técnico, aqui interessava o encaixe humano, a relação emocional com a comunidade, o respeito por aquilo que filmamos. Estávamos todos em sintonia e só assim conseguíamos regressar e continuamente estarmos presentes nas vidas e rotinas. Através dessa proximidade, começas a desenvolver uma grande confiança e a relação começa a ser de uma grande entrega e dádiva por parte deles. Isso resulta em momentos de intimidade únicos e valiosos. Da minha parte como realizador, só assim consigo conceber que através da exposição que aquelas pessoas estão sujeitas através da minha câmara, do som e das decisões que fizer na montagem, que haja uma justiça e dignidade na representação que estamos a fazer.

André Guiomar

E aqui temos uma entrada mais no terreno da ficção. Foi algo natural?

Tendo eu mais experiência no documentário do que na ficção, o Saturno não deixa de ser uma exploração pessoal de uma linguagem ficcional onde ainda estou num processo de descoberta. Mas em termos de mensagem e de olhar, acho que o percurso que tenho feito segue no mesmo sentido.

Sente-se que estás preparado para voos ainda mais altos, já como um nome consagrado dos cineastas da tua geração. Sei que estás a filmar outro documentário. 

Considero os voos que tenho voado já bastante altos, ou pelo menos tenho de os encarar assim. Mas estou sempre pronto a sair de uma zona “confortável” e de subir mais um degrau, esse será sempre o objectivo e a única forma de manter tanto entusiasmo e motivação.

Estou a meio da produção da minha próxima longa documental, projecto que também já dura há uns anos (desta vez interrompido pela pandemia que nos fez regressar à pressa no último voo em Março de 2020). Será a minha segunda longa documental, que me parece um formato que me serve melhor no tempo que preciso para construir as personagens e a relação do espectador com o próprio ritmo dos meus filmes. A base para a história é completamente louca, mas tal como nos meus outros projectos, normalmente a fase de filmagem é aquela que mais me define o caminho final que vou acabar por seguir. Conto terminar a fase de rodagem ainda este ano, mas veremos. A consagração será sempre um resultado natural do nível do trabalho que desenvolvemos e do alcance que os projectos conseguem ter. No final, trabalhamos sempre para podermos ter o privilégio de poder mostrar o filme e de podermos continuar a realizar ideias que nos vão surgindo ninguém sabe bem de onde.

Por fim, parece-me que o cinema português vem atingido uma maturidade cada vez maior, apesar das dificuldades e dos poucos apoios. És otimista em relação a este momento?

Em relação ao cinema português, visto da ótica de um realizador, sim e acho que todos temos de estar satisfeitos e otimistas com muito do reconhecimento alcançado para a quantidade de produção que temos. A quantidade de artistas e técnicos que temos com a qualidade que temos é meio surreal, como é que isso é possível com tão pouca escala de trabalho. E aqui também me refiro ao nível de artistas de outras artes como a literatura, a música, a pintura, o teatro.

Já como recente Produtor que sou, não sei se posso dizer o mesmo porque ainda hoje me pergunto como sobrevivem as produtoras de cinema em Portugal com a falta de escala e quase inexistência na distribuição internacional. É algo que temos de reflectir, se com uma grande globalização e possibilidade de alcance de várias plataformas temos também de repensar a nossa estratégia de alcance.

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