No filme que retrata o trabalho de portugueses na indústria aviária de uma cidade britânica, frequentemente em condições desumanas, Marco Martins explora com pertinência e arrojo o confronto entre o homem e o animal.
“Esta cidade cheira a sangue e a merda!” A cidade em causa é Great Yarmouth, um resort solarengo na costa leste da Inglaterra, conhecida, outrora, por chamar a geração sénior à procura de cocktails e ‘line dancing’. Mas é também a localidade que durante o inverno se esconde para viver do trabalho de portugueses que assegura a forte indústria aviária, frequentemente em condições de desumanidade. Uma força de trabalho conhecida localmente pelos ‘pork and cheese’ (a réplica de ‘portuguese’), e por ‘calar e aguentar (muito)’. Ora é precisamente o confronto entre o homem e o animal que Marco Martins explora com pertinência e arrojo no avassalador Great Yarmouth – Provisional Figures, um filme que partiu a loiça toda na sua apresentação em San Sebastian. E que nos faz viver uma fortíssima experiência de cinema.
Em certa medida, este Provisional Figures – correspondendo ao ‘número provisório’ de emigrantes tugas em busca de uma quimera que se revela um pesadelo – mantém até algum diálogo com os limites da crise económica e a pressão social evidentes em São Jorge, a anterior ficção que premiou em Veneza, em 2017, o filme e o guião de Marco, bem como a prestação de Nuno Lopes. Deste vez, com Marco Martins a escrever pela primeira vez, como confirma na nossa entrevista, um papel especificamente para Beatriz Batarda (à excepção da série Sara, em 2018), permitindo-a elevar essa entrega a um patamar absolutamente visceral, em que Batarda carrega, literalmente aos ombros, este filme tricotado a partir de várias histórias verídicas. E apenas partilhado com Melo quando este aparece, já no último terço do filme. Seja como fora, este é o filme da Tat, da Tânia, da Beatriz Batarda, da mulher a quem todos os trabalhadores chamam Mãe. À encarregada de gerir o trabalho, mas com um olhar e um corpo que parece saído de uma variante dickensiana do sofrimento tuga. Algo a câmara talentosa de João Ribeiro abraça e recompõe de uma forma tremenda num viscoso ambiente soturno que não desejamos conhecer.
O filme organiza-se numa tragédia em três actos (divididos pelos derradeiros três meses do ano a anteceder a semana das festas do Natal) alinhavando esta versão portuguesa e mitológica das condições do capitalismo selvagem na Velha Albion. Mesmo quando nos mostra algumas imagens no limite do humanamente sustentável. É o tal cheiro a merda e a sangue, do trimming e do deboning que Tat aprendeu a travar passando um pouco de creme Vick debaixo das narinas.
No meio de zombies, ela é uma sobrevivente, que alimenta ainda um sonho de Verão, de fazer um proper reburbisgment e aumentar o seu generoso pé de meia, ou as suas savings, como ela lhe chama (ampliadas, é certo, com alguma habilidade contabilística) para abrir um negócio de hotéis para reformados à procura de lazer – um pouco como em Rimini, de Ulrich Seidl, exibido em sala em Abril passado.
Mas é também essa ligação entre o homem e o animal que acaba por nos deixar diante um resto de humanidade, nomeadamente pela percepção do bird watcher Bob e da curiosa inversão que faz da teoria de Darwin.
Sim, este filme falado em português, embora maioritariamente em inglês, desafia uma comparação interpretativa no conjunto daqueles a concurso. E só não se perfilará como candidato a prémios se for traído pelo teor arrasador da avaliação da condição humana.