Estão perfeitos, mas… ça va pas!, anuncia a voz de um realizador, a certa altura, em O Trio em mi Bemol, o novo filme de Rita Azevedo Gomes, finalmente estreado nas salas nacionais. Dois anos depois do cinema intemporal de A Portuguesa, voltamos a encontrar-nos em Berlim com a cineasta. Ainda hesitantes quanto ao gesto de usar ou não a máscara… “É uma comédia… Para variar”, como nos diz. “Nunca fiz uma coisa assim. Se calhar teve a ver com aquela coisa do confinamento. Pois pode sempre acontecer qualquer coisa”….
Apesar de registos bem diferentes, ainda assim o deslumbre visual de A Portuguesa, um filme que se vê como um quadro e se escuta como um livro – sobretudo pelas palavras que Agustina Bessa Luís adapta do conto do austríaco Robert Musil -, consegue estabelecer uma relação curiosa com a este belíssimo filme solar e coral em que a sonoridade das palavras parece rimar com a música de Mozart, Bach ou Beethoven. Talvez a ligação seja esse profundo elo entre a narrativa e a arte do cinema.
O reencontro com Rita Azevedo Gomes ocorre numa das salas abertas do palácio da Berlinale para falar daquele projecto ensaiado numa casa junto à praia do Moledo. É aí que um casal (a portuguesa Rita Durão, presença habitual no cinema de Azevedo e o francês Pierre Léon) se entregam a uma espécie de dança de rituais de palavras, de frases, questionamentos.
A génese de O trio em mi bemol teve origem como um projecto para um ciclo de rádio drama, com peças de rádio, na TSF, numa seleção feita com a ajuda do Pedro Mexia. Só que acabou por não se fazer, acabando por Rita fazer A Portuguesa. Uma dessas peças era o Trio em Mi Bemol, do Rohmer, a única peça que escreveu, nos anos 60. Entretanto propôs ao Alexandre Oliveira, do Teatro do Bairro, “fazer em cena, ou seja, fazer a encenação da peça e gravar em directo, mas com público. Pagando bilhetes e tudo“.
O lado da palavra confere ao filme uma dimensão de ensaio que se confunde com o cinema, este encarado quase como forma de vida, em que se admitem mesmo pequenas falhas. Como na vida. Conversas em que se fala de música clássica, mas também de rock, como duas nuances entre o ambiente e a emoção, ou o amor e a tendresse. Cada um com a sua natureza, antes de um momento sublime tocado pela emoção musical.
“É tudo uma grande farsa”, como sugere Rita. Pois é. É o cinema. Mas um cinema – o cinema dela -, onde nos sentimos bem e porque sabemos onde estamos. Rita parte da peça com o nome do filme para o filme sobre essa peça que o realizador Jorge (Adolfo Arrieta) pretende realizar, mas que bem poderia personificar a própria Rita Azevedo Gomes.
“Quando uma pessoa vai fazer isto já não vai querer fazer Rohmer, não é? Isso já está feito. Ele fez e ainda bem que fez. Depois esqueces-te um bocado do cinema dele, totalmente”. Pois, é o teatro como cinema. Apenas com dois actores “Com aquela relação amorosa, em versão de comédia, que ele nunca tinha feito. Para mim, é um bocadinho fresco aquilo. Para além de outras frescuras…”, diz a realizadora numa gargalhada. Mas, sim, não tinha sombra do Rohmer, a não ser no texto. Porque “o Rohmer é milimétrico com cada palavra. Quando queres traduzir aquilo percebes que não é evidente e fácil. Mas isso gosto, quando não é evidente e fácil. Na tradução pões-te em várias posições para entender a palavra. Para mim, é muito difícil traduzir ‘aquilo’“.
Mas é também por aí que o filme sobressai. Ou seja, na transposição do rigor pelo trabalho de mise-en-scène – com aqueles planos à Oliveira (como se sabe, um cineasta muito da sua latitude) combinado com o prazer da palavra, quase como flâneur – tão querido a Rohmer. Algo que acaba por combinar na perfeição com o seu lado feminino (mesmo que se coloque no corpo de um homem) e filme a conversa entre Adélia e Paul (Rita e Pierre) divorciados há muito, embora amigos que se encontraram algumas vezes no mesmo ano.
O cenário é sempre a casa perto da praia, em Moledo do Minho, que funciona também como personagem. “Sim, é uma casa extraordinária. Foi uma bênção”. Isto apesar de ser totalmente diversa da ideia original. “De repente apareceu-me, fui lá ver e percebi. Eu quero fazer aqui. E adaptei o filme todo lá para dentro“.
Segundo ela, o filme “aconchegou-se muito bem à ideia, porque a versão do Rohmer é um apartamento, num boulevard, em Paris, com um janelão que dá para umas árvores. E tu depois vais sentido a passagem do ano. Com umas folhas vermelhas, depois verdes; depois o inverno, depois a neve. Portanto, há este tempo que eu tentei manter um bocadinho na ideia do filme, porque me agradava“.
No fundo, o filme oscila entre os diálogos dos dois e, a espaços, o monólogo interior do realizador, ou a meditação em total descontração quando sentado numa cadeira na praia. Mesmo quando seja para dizer: “estava perfeito, mas vamos fazer tudo de novo”. Mas porquê?, diz ele. “Porque sim”.
Ora, é nessa investigação de fazer de novo, mas diferente, que Rita Azevedo Gomes se estimulou. “Eu tenho um bocado a sensação de que as coisas já estão todas feitas antes de mim”, disse num suspiro disfarçado. “Está tudo feito. Mas quando se pega no material e se dão todas as voltas, há qualquer coisa que sai dali. Gosto muito de experimentar. Repudio um bocadinho as coisas de que já se está à espera“.
Estão perfeitos, mas… ça va pas! É isso, é um pouco aí que entra a ideia da construção de processos. Da fabricação. “Se fosse um realizador jovem, com as suas incertezas e hesitações, isso era um cliché total. Com o Arieta já não é um cliché. Porque é um homem que já fez o seu cinema. E que ninguém o conhece.” Fala-se ainda de um guião perdido (o do filme que se está a fazer). Mas que já não interessa. Lá está, é o que se faz que interessa. Como o amor. Como que a dar a entender que é esse momento de cinema a nascer que ele quer fazer perdurar. Ou como aquela mágica (mítica!) e lenta panorâmica de 360º, com a fotografia de Jorge Quintela, dentro da casa que nos envolve a nós quando Adélia diz que foi a uma livraria “à procura de uma frase num livro que a inspirasse” e se deixou levar “por uma música tocada no rádio que a emocionou”. O tal trio em mi bemol.