Domingo, Outubro 13, 2024
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Inês T. Alves: “Estas crianças são o espelho de um conhecimento que eles têm e que nós estamos a perder”

Encontro com a realizadora para um regresso mental à origem de Águas do Pastaza. Agora chega a vez de ser conhecido pelo público na sala de cinema. Na nossa conversa, num café no bairro dos Anjos, em Lisboa, fica claro o propósito da origem do gesto do cinema, bem como as vicissitudes do filme e até os encontros com… baratas. Como diz a cineasta, a certa altura, “eu aprendi muito a confiar na floresta”.


 

O que representa para ti este rio Pastaza?

O rio é uma grande personagem do filme. Ele vai mudando até de forma a toda a hora. Como chove muito a configuração do rio acaba por mudar constantemente e assumir-se como uma verdadeira personagem. E a relação das crianças com ele, com a chuva, com a água é muito importante, essencial. O rio é também a forma deles se transportarem, de irem de comunidade em comunidade, é fonte de alimento…

Como foi que se iniciou a génese do projeto?

Foi tudo muito espontâneo. Para já, eu não tinha intenção de fazer o filme, nem conhecia a comunidade. Eu não conhecia sequer a Amazónia.

No entanto acredito que estavas confiante que a ideia de cinema viria, estou certo?

Quer dizer, eu já tinha feito um mestrado em cinema documental (na University of the Arts London), já tinha feito alguns trabalhos. Por exemplo, tinha feito uma curta em Maputo. Mas estava um bocado cansada de me relacionar com o mundo a partir da câmara. Na verdade, tinha vontade de estar só a viver e a aprender. Mas fiquei tão impressionada com aquelas crianças, as suas capacidades, a sua autonomia, a sua relação com a floresta e com a vida, que foi impossível não ter vontade de fazer um filme. 

Na verdade, as crianças são uma potência muito forte no filme. Mas ao longo desse processo de aproximação, havia alguns limites no que desejavas fazer (ou não fazer), por exemplo, incluir adultos ou não?

Eu estive dois meses dentro da comunidade, sendo que o primeiro mês foi de descoberta. Como instrumento de trabalho, tinha uma câmara muito básica (uma Canon 70D), que nem é profissional, e um disco externo que se estragou logo no início. Por isso, foi tudo um pouco ‘survival’… Podia ter corrido mal. Felizmente consegui recuperar os ficheiros do disco. Durante esses dois meses passava quase 24h com as crianças. Senti que eram as crianças que estavam mais disponíveis para mim e que demonstravam mais curiosidade. Claro que também passei tempo com os adultos, mas com eles sentia-me mais perdida. As crianças estavam muito mais interessadas em partilhar coisas comigo e naturalmente fiquei muito próxima delas. Mas enquanto filmava não sabia ainda que os adultos não iram aparecer. Tenho muitas filmagens com adultos também. Mas o foco sempre foi as crianças.

A interação que vemos no filme partiu mais do lado deles ou foi sugestão tua?

Foi uma colaboração mútua. Fizemos algumas brincadeiras com imagem e falávamos sobre o que é filmar e ser filmado. Depois de algum tempo senti que poderia ser interessante fazer um filme e gravar o dia-a-dia destas crianças. Falei com a toda a comunidade, em primeiro lugar, depois falei com as crianças e rapidamente percebi quais eram as que estavam mais interessadas e disponíveis. Elas mesmo começaram a vir ter comigo com sugestões para filmarmos, e eu sempre ouvia os seus conselhos. Antes de ir-me embora fiz uma mostra das filmagens em bruto, para perceber a sua reação ao verem-se num ecrã grande.

É curioso como se sente mesmo esse lado orgânico. Há até uma parte em que uma delas pega no telemóvel e faz algumas imagens, captando mesmo a realizadora…

Sim, é verdade. Mas, infelizmente, perdi muitas imagens em que elas filmam com o telemóvel. Gostava de ter mais imagens feitas por elas.

Uma das coisas mais fascinantes do filme é notar como há da parte destas crianças um conhecimento profundo, uma certa autonomia. Mostram-se quase como uma pequena sociedade, sem mostrar os adultos. Concordas?

Sim, claro. Ainda que ela não seja perfeita. Na verdade, o que eu faço é uma proposta meio utópica romântica. Nesse sentido, há uma ficcionalização, mas também não fazia intenção de fazer um documentário etnográfico. Na realidade, os adultos estão lá, existem. Mas a ideia era mesmo fazer ressaltar essa independência das crianças e a capacidade de, em conjunto, entre elas, se entreajudarem, se relacionarem com os diversos elementos da floresta, as árvores, os cogumelos, os animais, a chuva. Para mim são o espelho de um conhecimento que eles têm e que nós estamos a perder. Eu sentia-me uma ignorante ao lado delas. Aprendi muito com elas. Por exemplo, a relação com os insetos…

Com os insetos?

Sim, baratas. Eu tinha algum nojo de baratas e quando mostrava essa reação, eles riam-se de mim porque não percebiam. Eles brincavam com elas. Diziam-me: mas elas não mordem… Eles só reagem negativamente a um inseto se souberem que lhes pode fazer mal. Eu aprendi muito a confiar na floresta.

No iniciado filme existe uma frase muito bonita do Agostinho da Silva. Já estava prevista ou foi incorporada?

A frase surgiu quando já estava na fase de montagem. Gosto muito do Agostinho da Silva e quando me deparei com esta frase achei que seria perfeita para iniciar o filme. Acho que esta citação resume aquilo que eu queria transmitir com o filme. Até porque não é só um filme sobre as crianças indígenas Achuar de Suwa. É sobre o que é ser criança e o que é ser humano, é sobre nós. Essa frase lembra-nos que as características que geralmente associamos à criança, a imaginação, a criatividade, a brincadeira, a intuição, de estar muito presente na totalidade das coisas, é parte da nossa essência em quanto seres humanos. Mas é algo que na nossa sociedade vamos perdendo, que penso que é importante conseguirmos resgatar. Não é o voltar a ser criança, mas o não perder essas características com que nascemos.

Achas que num projeto deste tipo existe o risco de se pensar numa ideia dourada em que estas comunidades vivem apenas no seu mundo quase primitivo, sem abertura ao exterior?

Eles nunca tiveram televisão, nunca tiveram rádio. Mas hoje já têm internet. É um processo inevitável e penso que é normal que tenham curiosidade em conhecer o mundo exterior. Acho que não temos o direito de lhes impor ou privar do que quer que seja, ou fazer juízos morais, mas também não temos o direito de lhes destruir os seus modos de vida. Neste momento é importante haver um diálogo sobre o poder das tecnologias.

E de que forma reagem eles à entrada da tecnologia? Conseguiam manter-se conectados com a sua vida, o seu dia a dia? 

Eu acho que ainda se mantêm muito conectados com a floresta e com os elementos. Aliás, isso está muito presente no filme. Também foi isso que me fascinou. Mas é verdade que existe um grande fascínio pelo telemóvel e pelo computador. É certo que ainda não existem muitos telemóveis, mas quando eles estão perto claro que querem ficar agarrados a ele. Como já sabemos, por experiência própria, há um grande risco de alienação. A chegada da internet vai com certeza ter um grande impacto, é uma caixa de pandora, para o bem e para o mal. 

Águas do Pastaza

Como fazem para se deslocar?

Eles andam de canoa entre as comunidades, mas têm de apanhar uma avioneta para chegar à cidade. O rio Pastaza chega à cidade, mas a certo ponto torna-se perigoso ir de barco ou canoa. Ainda bem que estão isolados apesar de haver gente (de fora) que quer fazer estradas por interesses económicos.

Achas que eles têm essa perceção ecológica e do risco que correm?

Sim, têm alguma consciência. Durante a pandemia intensificou-se a presença de indústria naquela região com o objetivo de cortar árvores de forma massiva, procuram a madeira do pau-de-balsa, que é usada para fazer as pás das eólicas por ser dura e flexível. Portanto para a green energy. Isto traz muitos problemas para aquela região, tem efeitos devastadores. Dizem-lhes que querem fazer estradas para ligar as comunidades, mas na verdade é  para fazer chegar os camiões. É claro que algumas pessoas locais aceitam porque recebem dinheiro, embora haja muitas queestão mais conscientes e tentam travar esse desmatamento.

A comunidade tem algum tipo de apoios?

Eles recebem algum apoio financeiro do estado, no entanto, é um estado bastante corrupto e neoliberal que tem apoiado as industrias extrativistas. Mas felizmente eles estão organizados a partir da NAE (Nacionalidade Achuar do Equador) que trabalha no sentido de proteger a sua cultura e os seus interesses. Aqueles que acabam por viajar e participar em encontros com outros indígenas são os que estão mais conscientes do papel importante que têm na conservação daquele lugar precioso. Mas quase todos têm essa perceção. Muitos jovens vão para a cidade trabalhar e percebem que estão melhor dentro da floresta. Sabem que é importante preservar aquele lugar. Ao mesmo tempo têm muito fascínio pelo Ocidente e querem ter acesso a outras coisas. Acho que é muito importante haver debates e conversas sobre tudo isto.

Seguiste algum tipo de referência para esta proposta de documentário?

Gosto muito do Kiarostami e do seu trabalho com as crianças. Sempre me fascinam as crianças dos seus filmes. Mesmo as ficções são muito documentais. Gosto também muito dos filmes do Agostino Ferrante – o Le cose belle (2012) e o Selfie (2019), por exemplo. Agnes Varda, António Campos, são outras referências.

Talvez por isso, digo eu, não queiras afastar-te deste universo infantil e do documentário. 

Eu percebi que a minha forma de fazer filmes tem a ver com os encontros que se dão na minha vida e o que acontece a partir dai. O mais importante é o encontro, as relações que se criam, e depois o filme manifesta-se de uma forma muito espontânea. Pretendo que os meus filmes se construam a partir dessa relação muito subjetiva entre mim e o mundo. Percebi que as coisas que acontecem de forma espontânea e muito intuitiva são aquelas que acabam por ter força. Por isso preciso de confiar na minha intuição. Quanto às crianças, elas mostram-nos uma coisa primordial – que é a essência do ser humano – que tem a ver com a criatividade, a entrega, a espontaneidade, a intuição, e eu sinto que elas nos podem ajudar a resgatar essas formas de estar, a relembrar. Há talvez culturas que as conseguiram manter, mas nós cá precisamos de relembrar…

Foi há exatamente um ano que aconteceu Berlim. Como foi essa reação?

Para mim foi uma grande surpresa, porque para começar não sabia que ia fazer um filme, muito menos imaginava que ia estar na Berlinale. Sempre imaginei que poderia ser mostrado em festivais em Portugal, e outros talvez de âmbito etnográfico. Mas Berlim foi uma grande porta, e é muito bom ver o filme a fazer este percurso, a chegar a tantas pessoas e lugares…

(artigo inicialmente publicado em esquerda.net)

 

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