Jorge Jácome deslumbra-nos com um cinema sensorial, que é (e não é, ao mesmo tempo) deste mundo. São os reflexos de vida existente entre o natural e o virtual.
Super Natural não é um filme como os outros. Talvez possa ser considerado como uma pequena pérola que se auto exclui de qualquer narrativa moldada pelos clichés do(s) género(s). No fundo, um cinema que cria a sua própria geografia, surge do invisível e indizível, estende-se muito para além da imagem e toma-nos o pulso. Seguimos, irresistivelmente, uma voz interior que se assume, como se conversasse, questionasse, questionando-nos (ler aqui a entrevista). E nos levando a pensar quem somos, quem é o outro, em que mundo vivemos. Na primeira longa metragem – depois de curtas muito promissoras, como Flores (2017) e Past Perfect (2019) -, Jácome faz a mouche e aborda o essencial. De tudo. Bravo!
Nunca o ecrã de nos interpelou desta forma. Ao mesmo tempo intensa e, pois claro, natural. Como uma investigação escondida nos interstícios das imagens em movimento. Tal como a sua própria conceção, a várias mãos – as de Jorge Jácome, André Teodósio e José Maria Vieira Mendes -, escrevendo, montando, escavando significados e significações. Seguindo essa ousadia formal, quase psicadélica, somos convidados a um mergulho, isto ainda com a imagem a negro, a um mergulho no universo, ao lado a ecologia das coisas, dentro do nosso universo antropocêntrico.
Depois de ter conhecido o novo filme de Jorge Jácome, ainda antes do festival de Berlim de há um ano e meio (onde justamente venceria o prémio da critica internacional na secção Fórum), deu-se o reencontro e o revisionamento do filme enquadrado na sua estreia esta semana. Foi um pouco como mergulhar de novo nas mesmas águas – de certa forma contrariando o aforismo filosófico -, embora um ‘mergulho’ já ancorado com uma experiência sensorial, a permitir uma atenção diferente às imagens, e sobretudo a devida atenção da palavra, tão singela e ao mesmo tempo tão importante. Claro, com outro tempo para absorver tudo isso. E respirar fundo.
E se disséssemos que este é um filme passado num multiverso (ou multidimensão), onde o tempo e o espaço é aquilo que quisermos que seja? Que se trata de um misto de ficção e documentário habitado por seres humanos, pela natureza, mas também por criaturas de outros mundos (reais e imaginários), por deusas da água e seres que abraçam e são abraçados por répteis de material sintético? Num outro contexto, estas palavras-chave poderiam até motivar um apelo diferente. Embora este filme produzido pela Ukbar Filmes, de Pandora da Cunha Telles e Pablo Iraola, esteja bem distante de um qualquer produto saído de uma filial da Marvel. Ou até da Netflix!
Ou será que é apenas o Cinema? Daí a importância deste questionamento permanente. Ou seja, quest-ce que le cinema?, quando interrogou Bazin. É que é tão raro sermos questionados ou interpelados de forma tão direta dentro da sala de cinema, como que convidando a uma sonolência terapêutica igual à sentida por Roland Barthes na sala escura, há várias décadas, bem antes do cinema digital. Mesmo quando ele queria sair dela. Mesmo assim, as diferentes formas de cinema presentes em Super Natural sugerem que nos deixemos ir, como que aceitando a sinalização das legendas no ecrã. Pois é o ecrã de cinema que nos desafia. Ainda a negro, os tais sinais elétricos interpelam-nos, como um sussurro de estática, que parece um bater de asas de uma borboleta eletrónica, a sugerir um momento de libertação do cérebro para o que aí vem. E o que aí vem é uma proposta sensorial, quase out of boby, talvez mesmo inédita, pois não recordamos semelhante apelo audiovisual.
Mas quando a legenda interroga “estás aí?”, já nós fomos capturados. E depois reforça: “deixa-te relaxar na poltrona”, “estamos a influenciar-nos em conjunto”. Chegando até à conclusão “porque não fizemos isto mais cedo?” Como se percebe, aqui a liberdade cinematográfica é total, até mesmo para ‘brincar’ com as legendas. Mas sempre com um ponto de interrogação: “não estás a ver a ideia?” ou “queres que te faça um desenho?”