Sábado, Maio 4, 2024
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Petite Fleur: querida, matei o vizinho!

O cinema do argentino Santiago Mitre tem andado nos olhos do mundo. É, aliás, o que se pode chamar um ‘valor seguro’ na consistente estrutura de cinema do seu país. Ainda que esta incursão em modo de co-produção, mais para consumo francófono, se satisfaça plenamente com um pincelada ligeira com tonalidades de alguma violência estética. Nada que um despretensioso filme de género lhe retire um interesse que será sempre muito superior aos ‘suspeitos do costume’ que, paulatinamente, vão marcando o seu espaço vital nas salas do cinema comercial.

Dir-se-ia uma sátira familiar já a pensar na época estival, sempre com o seu quê de silliness. Logo a começar pelo casal protagonista, ele Jose (Daniel Hendler), argentino, autor e criador de uma personagem iconoclasta de banda desenhada, em período de transição; ela, Lucie (Vimala Pois), francesa, mãe recente, com tudo o que isso significa. Eles barricado numa modorra doméstica e rotineira, entre fraldas e biberons, o suficiente para amolecer a criatividade e rasgo do desenhador. A oportunidade avizinha-se quando o tal acaso o leva a bater à porta do vizinho – Jean-Claude, um Melvil Poupaud suficientemente colorido, sobejamente excêntrico, apreciador de tintos milionários e de discos jazz com assinatura. Será num misto acidente, reação intempestiva, que um gesto brusco empurra o argentino indolente a uma manobra que cobra a vida ao vizinho.

Em si, o plano dificilmente sai da singeleza própria da situação; por isso também não espantará que, no dia seguinte, o déjà vu lhe bate à porta com o semblante patético de um vizinho renascido. Rapidamente, a sensação do ‘dia da Marmota’ (o Groundhog Day, que há precisamente 30 anos cumpria o Feitiço do Tempo, na repetição a Bill Murray daquela mesma manhã) gera uma breve coleção de bizarrias variando da diferentes formas de ‘mortes’ com que o desenhador se parece vingar da falta de imaginação para desenhar ou escrever.

Isto serviria para esgotar o tema de Petite Fleur, se os secundários não dessem uma preciosa ajuda que solidifica as bases seguras para o filme acontecer. Seja a francesa François Lebrun (a eterna Veronika de A Mãe e a Puta, de 1973, ou a mulher de Dario Argento, em Vortex, do amigo Gaspard Noé), mas também o espanhol Sergi Lopez (vimo-lo mais recentemente em Pacifiction, de Albert Serra) ou até o francês Éric Caravaca. Um domínio interpretativo que já sabíamos dos seguríssimos e robustos retratos políticos e psicológicos que recordamos com gosto, como La Cordillera (2017) e, em particular, Argentina 1985, estreia do ano passado, vencedor em Veneza, San Sebastian e vários outros festivais internacionais, além de ter sido um dos finalistas nos Óscares.

Seja como for, além da total legitimidade dessa experiência segura no mercado francês, Petite Fleur é isso mesmo, basta-se como filmezinho de descontração, para quem deseja sair da sua modorra excessivamente planificada.

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