Atentos ainda ao olhar de Rouben Mamoulian, Ernst Lubitsch, Michael Powell, Ousmane Sembène ou Teinosuke Kinugasa. E de todos os outros e das outras… Como as presenças de Nan Goldin, Wim Wenders ou Joe Dante.
Por esta altura, o ‘banquete de cinema’ já deve estar num alto nível de preparação e prestes a ser servido pela Cineteca de Bolonha e o festival de cinema restaurado Il Cinema Ritrovato. Uma vez mais, a maior dificuldade será a melhor escolha. Sendo o pior inimigo o tempo para desfrutar de tantas iguarias fílmicas. Aliás, é justíssima a comparação da edição deste ano do festival com o famoso filme de Jean Renoir La Carosse d’or (1952), a antecipar todo o esplendor que se avizinha. Sempre em cópias restauradas, claro, diversas em formato digital, embora muitas em 35mm (além de todos os formatos alternativos que recuperam o cinema do início do século passado).
Já se sabe, entre as inúmeras pérolas, teremos igualmente muitos dos seus criadores, bem como aqueles que participaram na preservação de muitos deles e os restauraram para novas cópias. Vamos a alguns dos principais convidados: começo por Nan Goldin, a fotógrafa que dispensa apresentações e cujo documentário The Beauty and the Blooshed / Toda a Beleza e Carnificina, vencedor do Leão de Ouro em Veneza e nomeado aos Óscares por Melhor Documentário, que irá dar uma Lição de Cinema. A montadora de grande parte dos filmes de Martin Scorsese, Thelma Shoonmaker, dará igualmente a sua ‘aula’ sobre o cinema de Michael Powell (sem Emeric Pressburguer), além de Wim Wenders, Ruben Östlund, Alain Bergala, Joe Dante, Thierry Frérmaux (diretor artístico do Festival de Cannes e diretor do festival Lumière, em Lyon) ou ainda Carlo Chatrian (co-diretor da Berlinale).
E, claro, todos aqueles que irão desfolhar as suas diferentes secções. Entre o rosto esfíngico de Greta Garbo (captado majestosamente pelo arménio Rouben Mamoulian, em Queen Christina (1933)) e o mais admirado (e copiado) de Anna Magnani (de que veremos toda a sua classe em filmes como Roma, Cidade Aberta, de Rossellini ou Carosse d’or, de Renoir (entre muitos outros).
Sendo o Il Cinema Ritrovato um festival que celebra a integralidade do cinema, já próximo dos 130 anos de idade (em 2025), apresentam-se pérolas na secção ‘o século do cinema’, sendo este ano a celebração secular de 1923. E um dos focos será os cineastas russos exilados em França a fazer cinema nos famosos estúdios Film Albatros, em Paris, bem como o expoente do cinema expressionista alemão, com a exibição de Warning Shadows / Schatten, do cineasta americano Arthur Robinson, a trabalhar na Alemanha, mas captando a magia da fotografia de Fritz Arno Wagner, responsável pela imagem de M, de Fritz Lang, e Nosferatu, de Murnau. Três décadas depois, em I, the Jury (1953), será a fotografia de John Alton num estilo rembrandteano, superando o facilitismo narrativo e a embrenhar-nos num sonho negro e anguloso.
Haverá ainda tempo para testemunhar o efeito histórico das projeções em carbono, na Piazetta Pasolini (o espaço exterior da Cineteca), tal como a magnitude da Piazza Maggiore – este ano, já com a nossa reserva para ver a obra prima de Ernst Lubitsch, Lady Windermere’s Fan (1925), com um novo restauro e devidamente acompanhado pela orquestra. Mas há muito para ver nessa grandiosa sala ao ar livre. Aqui fica o aperitivo: Spellbound, de Hitchcock, Belissima, de Visconti, Black Narcisus, de Powell e Pressburger. Valerá a pena notar que será possível ver um conjunto de filme de Michael Powell, a solo, durante os anos 30, antes do seu frutuoso encontro com Emeric Pressburger.
A secção Cinema Libero trata de revelar alguns segredos bem guardados. Este ano o destaque vai para o centenário do senagalês Ousmane Sembène, igualmente crítico às forças cristãs como islâmicas. Veremos The Outsiders (Ceddo, 1977), numa abordagem perspicaz ao colonialismo.
Como o caso do pioneiro tunisino Albert Samama Chikli, graças ao trabalho de preservação feito na Cineteca, com a apresentação de um conjunto de filmes entre 1905 e 1915. Tal como o cinema iraniano, com dois trabalhos assinalados como obras-primas de Bashram Beyzaie: são eles The Stranger and the Fog (Gharibeh va meh, 1974) e The Ballad of Tara (Cherike-ye Tara, 1979), oferecendo uma perspetiva feminista no seio de uma nação patriarcal.
Será nas retrospetivas dedicadas a realizadores que contamos descobrir algumas pérolas do Ritrovato, edição 2023. Este ano com a singular combinação entre ideias de cinema tão distintas, como as do (de origem) arménio Rouben Mamoulian e do japonês Teinosuke Kinugasa.
Contudo, ambos se aproximam na qualidade inovadora de explorar novas formas narrativas, frequentemente adaptando obras literárias e procurando terrenos de experimentação nos mais diversos géneros populares. Apesar da obra de Mamoulian ser bem conhecida, o trabalho de Kinugasa permanece pouco conhecido fora do Japão. Ainda que seja curioso observar como cada um realiza a sua transição do cinema mudo para o sonoro, apesar da manutenção de uma assinatura pessoal.
Por fim, mas nunca em último, as imagens de guerra – tal como as que vemos na guerra infame na Europa – tornam-se ainda mais pertinentes. Como o caso de Cross of Iron (1977), de Sam Peckinpah, evocando toda loucura do combate, o filme que mereceu o elogio de Orson Welles que o considerou o melhor filme anti-guerra que viu. Algo que terá nesta edição a concorrência do profundamente humanista e lírico The Burmese Harp (Biruma no tategoto, 1956), de Kon Ichikawa, terminando com a visão belicista de Stanley Kubrick, em Fear and Desire (1952), numa versão que o festival promete surpreender.
Haverá espaço para digerir tudo isto? Claro que sim. Como as imperdíveis conferências sobre restauro e preservação. E muito mais.