Segunda-feira, Abril 29, 2024
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Il Cinema Ritrovato: de Garbo a Magnani no reencontro do desejo no cinema

Atentos ainda ao olhar de Rouben Mamoulian, Ernst Lubitsch, Michael Powell, Ousmane Sembène ou Teinosuke Kinugasa. E de todos os outros e das outras… Como as presenças de Nan Goldin, Wim Wenders ou Joe Dante.

Anna Magnani, em ‘Le Carosse d’Or’, de Jean Renoir (1952)

Por esta altura, o ‘banquete de cinema’ já deve estar num alto nível de preparação e prestes a ser servido pela Cineteca de Bolonha e o festival de cinema restaurado Il Cinema Ritrovato. Uma vez mais, a maior dificuldade será a melhor escolha. Sendo o pior inimigo o tempo para desfrutar de tantas iguarias fílmicas. Aliás, é justíssima a comparação da edição deste ano do festival com o famoso filme de Jean Renoir La Carosse d’or (1952), a antecipar todo o esplendor que se avizinha. Sempre em cópias restauradas, claro, diversas em formato digital, embora muitas em 35mm (além de todos os formatos alternativos que recuperam o cinema do início do século passado).

Nan Goldin

Já se sabe, entre as inúmeras pérolas, teremos igualmente muitos dos seus criadores, bem como aqueles que participaram na preservação de muitos deles e os restauraram para novas cópias. Vamos a alguns dos principais convidados: começo por Nan Goldin, a fotógrafa que dispensa apresentações e cujo documentário The Beauty and the Blooshed / Toda a Beleza e Carnificina, vencedor do Leão de Ouro em Veneza e nomeado aos Óscares por Melhor Documentário, que irá dar uma Lição de Cinema. A montadora de grande parte dos filmes de Martin Scorsese, Thelma Shoonmaker, dará igualmente a sua ‘aula’ sobre o cinema de Michael Powell (sem Emeric Pressburguer), além de Wim Wenders, Ruben Östlund, Alain Bergala, Joe Dante, Thierry Frérmaux (diretor artístico do Festival de Cannes e diretor do festival Lumière, em Lyon) ou ainda Carlo Chatrian (co-diretor da Berlinale).

E, claro, todos aqueles que irão desfolhar as suas diferentes secções. Entre o rosto esfíngico de Greta Garbo (captado majestosamente pelo arménio Rouben Mamoulian, em Queen Christina (1933)) e o mais admirado (e copiado) de Anna Magnani (de que veremos toda a sua classe em filmes como Roma, Cidade Aberta, de Rossellini ou Carosse d’or, de Renoir (entre muitos outros).

Sendo o Il Cinema Ritrovato um festival que celebra a integralidade do cinema, já próximo dos 130 anos de idade (em 2025), apresentam-se pérolas na secção ‘o século do cinema’, sendo este ano a celebração secular de 1923. E um dos focos será os cineastas russos exilados em França a fazer cinema nos famosos estúdios Film Albatros, em Paris, bem como o expoente do cinema expressionista alemão, com a exibição de Warning Shadows / Schatten, do cineasta americano Arthur Robinson, a trabalhar na Alemanha, mas captando a magia da fotografia de Fritz Arno Wagner, responsável pela imagem de M, de Fritz Lang, e Nosferatu, de Murnau. Três décadas depois, em I, the Jury (1953), será a fotografia de John Alton num estilo rembrandteano, superando o facilitismo narrativo e a embrenhar-nos num sonho negro e anguloso.

Deborah Kerr, em ‘Black Narcissus’, de Michael Powell e Emeric Pressburger (1947)

Haverá ainda tempo para testemunhar o efeito histórico das projeções em carbono, na Piazetta Pasolini (o espaço exterior da Cineteca), tal como a magnitude da Piazza Maggiore – este ano, já com a nossa reserva para ver a obra prima de Ernst LubitschLady Windermere’s Fan (1925), com um novo restauro e devidamente acompanhado pela orquestra. Mas há muito para ver nessa grandiosa sala ao ar livre. Aqui fica o aperitivo: Spellbound, de Hitchcock, Belissima, de Visconti, Black Narcisus, de Powell e Pressburger. Valerá a pena notar que será possível ver um conjunto de filme de Michael Powell, a solo, durante os anos 30, antes do seu frutuoso encontro com Emeric Pressburger.

A secção Cinema Libero trata de revelar alguns segredos bem guardados. Este ano o destaque vai para o centenário do senagalês Ousmane Sembène, igualmente crítico às forças cristãs como islâmicas. Veremos The Outsiders (Ceddo, 1977), numa abordagem perspicaz ao colonialismo.

Como o caso do pioneiro tunisino Albert Samama Chikli, graças ao trabalho de preservação feito na Cineteca, com a apresentação de um conjunto de filmes entre 1905 e 1915. Tal como o cinema iraniano, com dois trabalhos assinalados como obras-primas de Bashram Beyzaie: são eles The Stranger and the Fog (Gharibeh va meh, 1974) e The Ballad of Tara (Cherike-ye Tara, 1979), oferecendo uma perspetiva feminista no seio de uma nação patriarcal.

Será nas retrospetivas dedicadas a realizadores que contamos descobrir algumas pérolas do Ritrovato, edição 2023. Este ano com a singular combinação entre ideias de cinema tão distintas, como as do (de origem) arménio Rouben Mamoulian e do japonês Teinosuke Kinugasa. 

Machiko Kyô, em ‘Gate of Hell’, de Teinosuke Kinugasa (1953)

Contudo, ambos se aproximam na qualidade inovadora de explorar novas formas narrativas, frequentemente adaptando obras literárias e procurando terrenos de experimentação nos mais diversos géneros populares. Apesar da obra de Mamoulian ser bem conhecida, o trabalho de Kinugasa permanece pouco conhecido fora do Japão. Ainda que seja curioso observar como cada um realiza a sua transição do cinema mudo para o sonoro, apesar da manutenção de uma assinatura pessoal.

Por fim, mas nunca em último, as imagens de guerra – tal como as que vemos na guerra infame na Europa – tornam-se ainda mais pertinentes. Como o caso de Cross of Iron (1977), de Sam Peckinpah, evocando toda loucura do combate, o filme que mereceu o elogio de Orson Welles que o considerou o melhor filme anti-guerra que viu. Algo que terá nesta edição a concorrência do profundamente humanista e lírico The Burmese Harp (Biruma no tategoto, 1956), de Kon Ichikawa, terminando com a visão belicista de Stanley Kubrick, em Fear and Desire (1952), numa versão que o festival promete surpreender.

Haverá espaço para digerir tudo isto? Claro que sim. Como as imperdíveis conferências sobre restauro e preservação. E muito mais.

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