O cinema de Susana Nobre tem essa capacidade discreta de atravessar esse espaço, tão incerto quanto fascinante, entre a ficção e a realidade. Fruto talvez da sua proximidade com ambos os registos. Aliás, o próprio título Cidade Rabat parece destinado a lançar alguma ilusão. Ainda que esteja profundamente ancorado numa realidade próxima da realizadora e produtora. Até porque neste filme, Susana falará daquilo que conhece, de algo que lhe é bastante familiar. E do luto também. Mesmo quando assume o género da ficção. Como se a realidade fosse sempre bafejada por algo de encenado; mas também a ficção apenas a ceder uma parte ao real que nos pertence. Aliás, como garante, “este trabalho passou por um processo de escrita elaborado”. Pelo menos, mais do que o anterior No Taxi do Jack, o filme de 2021, que levou a Berlim – tal como Cidade Rabat, este ano.
O filme começa com uma casa e uma desvinculação do passado. Há uma mulher que se vai despedindo, rasgando postais de férias e viagens, como que a apagando esse rasto, limpando (ou preparando) o caminho de uma vida. A seu lado, uma jovem, a actriz Raquel de Castro, numa inesperada estreia no cinema, em que é difícil de não a encarar como um espelho provocatório de Nobre. Mais: a realizadora e produtora, aparentemente, negoceia “certos aspectos biográficos”, mesmo aqueles tocados pela perda, como a perda da sua mãe e da mãe da personagem de Raquel, no filme. É a isso que chamamos representação da realidade. Mesmo que seja para ver coisas diferentes.
Talvez esteja mesmo aí que reside a força de Cidade Rabat, que parece esconder mais do que aquilo que revela. Sempre tão rigoroso, milimétrico. Independentemente de parecer (e ter sido mesmo) feito com amigos, colegas, nesse gesto de cinema participativo, comunitário mesmo. E a pensar na proximidade com as pessoas.
Apesar da inegável parecença de Raquel com Susana, afinal de contas, “não foi nada intencional. Nunca pensei a personagem da Helena das suas características por ser parecida comigo.” Mesmo que admite essa “janela autobiográfica para a escrita”, pois parte de factos biográficos. Mesmo que se trata de uma ponte entre o real se misture com elementos de ficção, “num arco narrativo que é uma construção”, como assume. “A partir do momento em que fui para a escrita, essas coisas dissiparam-se, porque as pessoas acabaram por tomar conta do filme. E são muito mais fortes que esse plano. Nunca foi meu objectivo cumprir à letra os dados reais em que o filme se baseava. Apesar de existir um argumento, foi sempre dirigido em função daquilo que ia acontecendo na rodagem.”
Mas esse é também o terreno que Susana Nobre sente que lhe pertence. Não são nas produções da Terratreme, normalmente, num oscilar que permite um trabalho de cinema particular. “Não é tanto uma categoria, mas um princípio, uma matéria para o cinema”, como nos confessa. “Ao mesmo tempo o real é também uma interpretação. É sempre um duelo da ordem da ficção. Estamos sempre entre estes dois contrapesos. Mas este é um filme completamente feito na lógica da ficção. Ainda que no controlo da cena; dos diálogos de uma montagem, que foi em parte feita na rodagem.”
Assim foi feita a escolha de Raquel de Castro. “Uma escolha única”, garantiu. “Ela é uma actriz que tem um percurso mais ligado ao teatro. Aliás, nunca tinha feito cinema. O filme estava a aguardar o impulso para começar. Eu vi apenas um vídeo dela e achei que o meu assistente tinha razão. Gostei do facto dela ter sido enfermeira antes de ser actriz. Achei que era um bom background para fazer a personagem. Fizemos os testes de câmara e não vi mais ninguém. Devo dizer que tenho muito orgulho nisto.”
De resto, Susana assume aquilo que vemos. Que se trata de um filme que lhe é próximo, feito por amigos. Até vemos lua o Ico Costa, em ‘assistente’ da protagonista. “Eu recorri muito pouco à figuração, convidei muitos amigos. Nesse sentido, é um filme muito familiar. É um filme no sentido daquilo que me é próximo. Aliás, acho que uso isso desde o primeiro momento em que comecei a filmar. Acho que devemos filmar aquilo que nos é familiar. É a máxima ‘bressoniana’.”
Há como que um efeito de ilusão do espectador que o pode induzir a replicar na personagem de Helena a de Susana. “Sim, mas eu não sou a Helena. É importante frisar. Não sou a Helena produtora, mesmo no meu trabalho com a Terratreme Filmes. Mas sei o que é o mundo da produção, ligado às burocracias do cinema. Nesse sentido sim. Mas não reproduzo nela as coisas que faço.”
Por fim, revela-nos a realidade da sua ficção: “a Cidade Rabat é a rua da minha casa de origem, a casa da minha infância. Foi ali onde nasci, onde cresci. Era a minha rua. Aliás, este é um filme sobre o luto. O filme é já escrito numa fase já bastante posterior. Não é um filme escrito na tristeza do luto, mas sim numa outra dimensão. Embora tivesse aquela memória muito minuciosa de tudo o que acontece. Também me baseei de coisas de literatura, do que li.”