Sábado, Abril 27, 2024
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Edgar Pêra: “Não há um algoritmo para fazer cinema”

Entrevista com o autor de Não Sou Nada, onde se fala de Fernando Pessoa, cinéfilia e inteligência artificial.

Conversa com o autor de Não Sou Nada, o filme que faz saltar cá para fora o diálogo entre a multidão de vozes e autores que habitam a ‘persona’ de Fernado Pessoa. Um projeto, ou um convívio com Edgar Pêra que vem desde a adolescência. E que aqui nos explica as exigentes condições de rodagem, em Vila das Aves, em plena pandemia, bem como a sua experiência com o ‘brinquedo’ da inteligência artificial (ou a ‘inteligência animal’, como prefere chamar). E, como não podia deixar de ser, o diálogo que este filme tem com o seguinte (quase pronto), Cartas Telepáticas, em mais uma aproximação a Pessoa, mas também a H.P. Lovecraft. Uma coisa é certa, o ‘cinenigma’ Não Sou Nada, escapa totalmente à ideia do ‘algoritmo da pipoca’.

É muito interessante o desafio de nos colocarmos dentro da cabeça de Fernando Pessoa. Só que com dezenas de heterónimos. Qual foi o desafio de entrar nesta dimensão? Haverá também aí nesse mundo muito habitado algo que é tambémdo Edgar Pâra?

Bom, eu já faço filmes na cabeça das pessoas há bastante tempo. E talvez o mais ‘pessoano’ deles todos seja A Janela (Maryalva Mix) (2001), em que o Senhor Ego (alter-ego de Pêra) tem vários alter-egos, a Lúcia Sigalho interpreta as personagens femininas e os actores masculinos fazem uma só personagem. Há aqui a ideia de multiplicação e fragmentação, que é obviamente muito ‘pessoana’, no sentido de tornar mais complexa, mas também mais realista, do meu ponto de vista. Era o Alain Resnais que dizia que para algo ser verdadeiramente realista teríamos de incluir também os pensamentos da pessoa que observa. O Pessoa e o Einstein, descobriram na mesma altura o papel do observador. E, no caso de Pessoa, a fragmentação do eu na sociedade. Pois todos nós interpretamos cada vez mais papéis, consoante a pessoa que está à nossa frente. 

Ou seja, este é um projeto que vem de longe…

Sim, este projeto foi crescendo desde a minha adolescência. Comecei com um livro do Álvaro de Campos que já está em muito mau estado. Aliás, tenho outro igualmente deteriorado, que é Eu Sou Uma Antologia, 136 Autores Fictícios. Entre estes dois livros houve toda uma história de leitura de leitura do Pessoa. 

Interessante a ideia de concentrar todos os heterónimos dentro do mesmo espaço.

Sim. O projeto começou como um edifício na cabeça do Pessoa em que habitavam os seus heterónimos. Entretanto, o (produtor) Rodrigo Areias mostrou-me aquela fábrica (em Vila das Aves). Filmámos durante a pandemia e acabei por adaptar o guião ao estado de sítio em que vivíamos. Mas era o tipo de ambiente que me interessava para materializar os heterónimos a trabalhar naquele universo. Como uma utopia em que o Fernando Pessoa concretizava todos os seus projectos, através dos seus heterónimos. Inclusive ter uma produtora de cinema, que imaginou, como forma de ganhar dinheiro (que nunca ganhou), a Ecce Filme. 

Este foi um guião escrito por Luísa Costa Gomes, certo? 

Sim, o guião inicial foi escrito pela Luísa Costa Gomes, mas depois fiquei isolado em Guimarães durante vários meses a adaptar tudo a partir do próprio local. Por outro lado, esse isolamento forçado também ajudou a concentrar o universo do filme. E pudemos trabalhar em bolha em ambiente bastante mais descontraído.  Mas a ideia inicial que discuti com a Luísa está lá. Isso acontece com todos os meus guiões que estão em constante evolução, mas os objetivos são os mesmos desde o início.

Paulo Pires numa cena durante a rodagem de Nothingness Club – Não Sou Nada (foto: José Caldeira)

Interessante a introdução de um género específico, com a personagem da Vitória Guerra.

Sim, como femme fatale! São poucos os filmes em que eu deliberadamente recorro ao universo da cinefilia. Mas precisava de um clichê que deixasse de ser clichê, que a transformasse numa intelectual completamente diferente do cliché femme fatale. Isto apesar de todo o seu visual e todo o seu comportamento ser retirado do film noir. Algo que permitia que ela fosse uma figura muito forte e funcionasse como antivírus, desfragmentando a cabeça do Pessoa. Fazendo dele, uno, um só. 

Edgar tu filmas, escreves, desenhas, compões. De alguma forma sentes também que és habitado por diferentes seres ou partes criativas de ti próprio? 

(risos) Por vezes até tenho um pensamento, e começo à procura de um nome para um alter-ego que personifique por exemplo os meus pensamentos mais sombrios. É algo que tem um lado lúdico, uma componente terapêutica, e um lado puramente criativo. Fazer Não Sou Nada, foi uma forma de poder chegar à complexidade de uma mente de uma pessoa de cuja obra tanto admiro.

Sentes que apesar de tudo há uma espécie de um prolongamento com alguma lógica do cinema que fazes? Algo que tem esses elementos de ligação?

Para além de A Janela tenho muitos filmes queabordam a fragmentação do eu, a poesia. Desde SWK4 (a curta sobre Almada Negreiros, de 1993) que recorro ao trabalho poético para criar uma nova matéria. Ao mesmo tempo, esses filmes são feitos para estimular a curiosidade das pessoas pela obra de autores que eu tento gosto, como foi o caso do Homem-Pykante sobre o poeta e performer, Alberto Pimenta. 

Mas há também uma dimensão cinéfila que te acompanha, certo?

Há essa tradição cinéfila que vem da adolescência. É evidente que a série B, e o expressionismo, todo aquele cinema dos anos 20 até aos anos 50, me influenciou, de uma forma muito subterrânea, porque as melhores influências são aquelas que nós não reconhecemos. As outras já não são influências. Já estamos a usar o algoritmo dos outros, para criar. 

Sei que tens desenvolvido algum trabalho com o universo da inteligência artificial, um lado que me interessa muito como matéria de criação. Encaras com alguma naturalidade essa utilização?

Tenho sempre curiosidade de experimentar qualquer brinquedo novo. A questão tem a ver com o uso de tecnologias quando estão no início. Muitas vezes os criadores têm estilos diferentes consoante os temas. O Tommi Musturi (autor finlandês entrevistado no programa  Cinekomix!!!) disse que ‘o estilo é uma ferramenta do capitalismo’. E não só. É uma ferramenta de muitos criadores que, a pretextos vários, como a “homenagem”, estão a parasitar o trabalho dos outros, não sendo essa atividade muito diferente da IA, a meu ver. Mas a questão de inteligência artificial já se colocava antes, porque há tantos filmes que são baseados no ‘algoritmo da pipoca’, não é? No fundo, com uma lógica de ‘likes’. O importante é não despedir pessoas a pretexto da IA. 

Algo que usaste no clip (Losers) com o Legendary Tigerman, não foi?

Sim, com este filme pude destruir o planeta, deixar tudo a arder, sem qualquer budget. Isto só mesmo seria possível em Hollywood! Ainda por cima como ainda há imagens IA com aquele estética VHS, com um lado cru, com anomalias, o que me interessa imenso. Gosto de expor a matéria.

Quais foram os autores que mais te inspiraram ao longo da tua carreira?

O Cronenberg e o Lynch já seriam exemplos que chegam. Mas, isso já foi mais um processo de identificação enquanto autor. Os filmes que eu via aos 13 anos, eram o Belle de Jour, do Buñuel, ou o Roma, do Fellini. Aí eu percebia que não havia um algoritmo para fazer cinema. Por exemplo, no Belle de Jour, estamos dentro de pensamentos, o que acaba por ser uma influência que ficou e que está enraizada. Nem seu sei quando isso está em ação quando filmo.

Quando estamos a falar de atores como o Miguel Borges e o Albano Jerónimo, já sabes mais ou menos o que eles te conseguem andar?

Sim, no caso Miguel Borges, como já trabalhei tanto com ele o que tínhamos de fazer era uma espécie de contraditório daquilo que tínhamos feito até então. O exercício de Miguel era ser o boss, ou seja, estar sempre a controlar e a controlar-se. Nunca tem de mostrar que é o boss. Tal como Al Capone que pega no taco de baseball e parte da cabeça de um tipo ao almoço e a partir daí é um personagem autocontrolado. Eu dizia ao Miguel: ‘o boss nunca precisa de mostrar que é boss!’. O que, para ambos, que gostamos de estar sempre em movimento, este foi um exercício de contenção enorme. O trabalho do Miguel está lá, mas as pessoas nem sequer se apercebem da quantidade de trabalho que está lá. Foi o papel mais difícil de fazer, porque todos os heterónimos exprimiam aquilo que era. Ele tinha que ser um ecrã para o espetador projetar as suas emoções. E sem ser um vazio. As frases politicamente incorrectas do António Mora (António Durães) só apareceram no filme porque ele leva electroques quando as diz. Foi a forma de eu convencer o Rodrigo (risos). Mas o pensamento do Pessoa era complexo ao ponto de ele conseguir pensar exatamente os contrários.

O Albano é o animal de outra dimensão em que trabalhas mais aquela pulsão dominadora…

O Albano é uma personagem Marvel (gargalhadas) É o Hulk, é o Wolverine!.  É um Super-Homem em anti-herói. Ele está ali para fazer tudo aquilo que o Pessoa não conseguia fazer.

Para terminar, continuas a usar inteligência artificial na tua próxima longa?

Estou a terminar o Cartas Telepáticas, sobre o Pessoa e o Lovecraft. Comecei por não o fazer, mas a 9 de Setembro de 2022 comecei a utilizar a ‘inteligência animal’, que é como eu lhe chamo – porque a base de dados ainda é humana. Entretanto começaram a aparecer outras aplicações para animar as imagens fixas. Mas o filme vai ficar terminado já este ano. É um filme em que apenas as vozes são humanas. 

Eu diria que tu ‘não és nada’, mas tens ‘todos os sonhos do mundo’, com o Pessoa…

Alguns, pelo menos, não é? Mas tenho todos os filmes do mundo! (Risos) E sobretudo aqueles que ainda não foram feitos. Essa é que é grande questão, o cinema que não foi feito ainda. Assim como me interessou o 3D digital, assim que apareceu, agora claro que me interessa este ‘novo brinquedo’. Os filmes são ‘brinquedos da consciência’, como dizia Aldous Huxley sobre os livros, onde podemos criar uma nova perceção do real. Claro que não resisto a experimentar e a testar esses brinquedos mas sempre no sentido de criar novas formas de narrar.

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