Segunda-feira, Abril 29, 2024
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Nan Goldin em Bolonha: “Já não há filmes no cinema. Passa tudo na televisão”

A artista e fotógrafa americana Nan Goldin elevou a fasquia de qualidade do festival Il Cinema Ritrovato. A sua presença em Bolonha e a conversa promovida pelo diretor Gian Luca Farinelli foi um dos pontos altos da edição deste ano. Mesmo com um jet lag, ao fim de uma viagem de 18 horas, em parte devido à cortina de fumo que desviou os aviões fora de Nova Iorque, Nan Goldin encantou a plateia para a ouvir falar da muito especial relação que mantém com a imagem – fotográfica, em movimento e a relação entre ambas. Mesmo que não fosse essa a agenda, não deixou de abordar o premiado documentário de Toda a Beleza e a Carnificina, de Laura Poitras, vencedor do Leão de Ouro o ano passado no festival de Veneza (e já exibido em Portugal).

Em estilo de lição de cinema, e com a sua habitual frontalidade, Goldin confessou o desejo de fazer cinema. Nesse sentido, o projeto Sirens: Memory Lost, de 2020, é aliás um excelente avanço. Aí mescla temas que lhe são próximos: drogas, cinema, fotografia e um tremendo sentido de estética e sensualidade. Ao longo dessa hora, falou igualmente da influência decisiva que recebeu do cinema de Antonioni e Pasolini.

Entre o cinema e a fotografia

Em reposta à pergunta sacramental de Gian Luca Farinelli, indagando o primeiro filme que teria visto, a fotógrafa americana recorreu a uma memória profunda para evocar “um filme sobre um cão” que viu quando tinha apenas cinco anos. “Foi uma epifania”, confessou. “Acho que nunca me senti tão bem na minha vida. Apenas queria que o filme nunca mais parasse”, referiu a artista que cresceu nos subúrbios de Boston antes de se mudar para Nova Iorque. De resto, o cinema acompanhou-a ao longo da sua vida. E foi mesmo um substituto da escola secundária que não frequentou, mas que lhe permitiu perder-se numa sala para ver um filme várias vezes seguidas.

Sobre as suas influências, destacou um dos vultos do cinema undergorund novaiorquino do final dos anos 70 e início dos 80 – a cineasta Vivienne Dick: “Ela era a rainha do Super 8. Continua a trabalhar, mas já não em Super 8. Depois, claro, há o John Cassavetes, a Dorothy Azner… Posso continuar a falar horas sobre todos os que me influenciaram… O que se passa com o meu trabalho é que nunca é divertido. Este, aqui e agora, é o pedaço que é divertido (risos). Gosto imenso de poder fazer algo que seja mesmo divertido.”

Em Sirens transporta-se (e a nós com ela) para o efeito do consumo das drogas. “Queria mostrar a euforia e a sensualidade das drogas”. Algo que faz através de uma colagem de excertos de imagens e fotografias. “É uma viagem longa pelo tempo. Não será tanto um filme sobre a história do cinema, mas usa da história do cinema,” salienta. Talvez por isso admita: “Eu coleciono coisas, coleciono filmes, coleciono música. No entanto, este é um filme diferente de outros feitos a partir de found footage, pois é impulsionado por um corpo e um movimento. Não apenas excertos de filmes. É algo vivo, que se move. E que quase podemos tocar.” Indeed, miss Goldin.

No entanto, a influência para o seu cinema vem também do Velho Continente, em particular no cinema italiano. “Descobri o Antonioni quando tinha 15 anos. E como eu não frequentei o liceu – fiz apenas a escola livre da vida -, ia constantemente ao cinema. Eram essas as minhas aulas. Ia ao cinema três vezes por semana. Isto nos arredores de Boston. Na altura, os cinemas eram ótimos. Exibiam sempre double features. Um dia fui ver o Blow Up. E decidi logo iria ser fotógrafa.” Sobre o cinema de hoje, e como são vistos os filmes, não tem muitas dúvidas: “Já não há filmes no cinema. Passa tudo na televisão. It’s a shame! É uma pena cada vez menos podermos ver filme projetados com uma luz. “ Indeed, miss Goldin.

Num dos excertos programados por Farinelli assistimos a um momento belíssimo de um minuto, com o screen test que Monica Vitti fez para o filme de Antonioni, Deserto Vermelho (1964). É o contacto com o rosto da atriz italiana, apenas com o jogo dos movimentos do olhar, mais tarde fixados nos planos magníficos de Deserto Rosso. E foi esse lado da imagem ‘fotográfica’ que fez ligação com imagens do início do século XX, mais concretamente de 1903, pintadas à mão, (precisamente o filme mostrado na sessão surpresa de abertura), como parte de um espólio particular do neto de um detentor de alguns filmes Pathé, com a particularidade estarem em muito bom estado. Um minuto de meninas holandesas, que posam com chapéus e lenços na cabeça. No fundo, um prolongamento da ideia do screen test, como assume Nan Goldin, embora separados de seis décadas. “São cores muito bonitas e delicadas. Acho que todos os filmes têm uma base de fotografia. É por isso que faço slide shows. Isto porque sempre quis ser cineasta. De alguma forma, acabei por me ligar mais à fotografia e menos ao cinema. Portanto uso ‘stills’ nos meus filmes.”

A propósito de uma pergunta da audiência, sobre os direitos queer, Nan evocou a sua proximidade com o mundo da pop art em NY. “Comecei a fotografar o Jeff Koons quando vivi com ele nos anos 70, portanto acompanhei o nascimento dos direitos queer e trans. Uma realidade com que hoje muita gente se identifica. E até numa idade muito jovem. Algo que a extrema direita tem usado como argumento reacionário. Basicamente, o que estão a tentar fazer é retirar todos os direitos e tornar ilegais as crianças trans e fazer com que odeiem o seu corpo. É horrível.”

Entre a realidade e a ficção

A sessão terminou com um pequeno excerto de um filme de 4 minutos de 16mm, em que Agnés Varda filma Pier Paolo Pasolini, em 1966, em Times Square, na rua 42. A pedido de Agnès, Pier Paolo explica em francês à francesa a diferença entre a realidade e a ficção. Desde logo, para referir que essa diferença não existe: “o cinema é a realidade que se exprime por si própria.” Por isso assume que toma “sempre o ator por aquilo que ele é. Não quero que ele represente. Não posso usar um homem que é bom para fazer um mau. É impossível. É repugnante”, garante o cineasta nascido há um século.

“Quando vi A Paixão Segundo São Mateus foi como se Pasolini nos mostrasse o seu Ticiano. Aí até pensei: talvez exista um Deus. Por isso, vê-lo em Nova Iorque nos anos 60, com aquela câmara da Varda. Tão bonito, tão despretensioso, tão honesto. Sim, aquilo é Nova Iorque. E o que ele diz sobre a ficção e a realidade é muito importante para mim, pois tudo o que sei sobre a vida vem do cinema dele.” Sobre o mistério em redor da morte de Pasolini, Gian Luca Farinelli anunciou que, em breve, se irá saber a verdade sobre a morte de Pasolini. Pois, como considera o diretor do Il Cinema Ritrovato, o cineasta italiano “não foi morto pelo rapaz… mas por diversas pessoas. Era absolutamente impossível que ele o tivesse feito sozinho.”

A ‘lição’ terminou com um comentário ao documentário, a Toda a Beleza e a Carnificina, de Laura Poitras, vencedor do Leão de Ouro, o ano passado no festival de Veneza (e já exibido em Portugal). Como se sabe, trata-se de uma espécie de biopic muito confessional sobre a vida de Nan Goldin. Nomeadamente, a sua relação e adição de drogas, abordando, paralelamente, o movimento de denúncia que moveu à poderosa (e tóxica!) família Sackler. Aqueles que eram considerados como investidores em alguns dos principais museus, eram igualmente detentores de um mercado de medicamentos opiáceos responsáveis, ao longo de décadas, pela morte de milhares de pacientes, que se tornaram dependentes e morreram devido aos efeitos desse medicamento.

“O objetivo era expor a família Sackler e mostrar ao mundo como eles faziam dinheiro, sabendo que centenas de milhares de pessoas estavam a morrer. Apesar de isso apenas aumentar os seus lucros”, referiu. Nesse sentido, fazendo com que os museus percebessem que não deveriam aceitar dinheiro dessa forma. “Não sei se a política dos museus está a mudar, mas parece-me que estão cada vez mais alerta sobre a culpabilidade de pessoas na sua administração. Acho que existe uma preocupação maior nesse sentido”. Seguramente, pelo empenho de algumas dezenas dos artistas mais importantes que assinaram a petição de Nan e Laura Poitras (a realizadora do filme). “Acho que este filme é o nosso grande gesto. Já foi visto por milhões de pessoas. Ou seja, já ganhámos!”

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