Os Verdes Anos de Isabel Ruth (ou o tempo volta para trás)?

Rever Os Verdes Anos para perguntar Onde Fica Esta Rua? Sim, o tempo fez o seu feitiço, com Isabel Ruth a cantar num maravilhoso showcase no Cinema Ideal.

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Isabel Ruth: 'Onde Fica Esta Rua?'

Será inquestionável, por diversos motivos (e mais um), constatar a singularidade do primeiro filme de Paulo Rocha na história do cinema português. Se calhar, porque cada um de nós terá a sua relação afetiva com a fita de 1963. Terá até sido um gesto de afeto a motivar João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata a proceder à profunda e rigorosa investigação arqueológica que nos é devolvida no filme-revisitação Onde fica Esta Rua? ou Sem Antes nem Depois. Aliás, Os Verdes Anos não é um filme qualquer, pois representa, talvez, o mais seguro arranque do Novo Cinema luso. Ali mesmo nas Avenidas Novas. E porque será, ao mesmo tempo, um gesto bem visível sobre a deambulação urbana a suscitar uma especial relação de afetividade com a capital.

Foi à procura desse rasto que embarcámos na ‘double feature’ sugerida pelo Cinema Ideal – ou seja, começando pela revisão atualizada de Os Verdes Anos, na sua versão devidamente restaurada e digitalizada, supervisionada por Pedro Costa (já depois da morte de Paulo Rocha, em 2012) – aliás, diga-se, que muito ganha em desenho sonoro, mas não só. Este o filme de preparação para questionar a proposta de homenagem da dupla de realizadores em Onde Fica Esta Rua?

Partindo do roteiro original, a ideia de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata foi palmilhar, plano e plano, o mapa do filme, embora sem que os locais do filme perdessem as marcas e as referências de hoje. Contudo, o elemento definidor que demarca o filme de um mero exercício de virtuosidade será mesmo oferecido pela cumplicidade de Isabel Ruth. Que, mesmo discreta, chega (e sobra) para oferecer ao filme a sua justificação. Faltou ver nessa sessão, hélas, o documentário de 30 minutos de Edgar Feldman, baseado nas entrevistas feitas a Paulo Rocha, na altura da rodagem do seu último filme Se Fosse Ladrão Roubava. No entanto, em vez dele, tivemos Isabel Ruth ao vivo a (em)cantar Verdes Anos, entre outros temas para deleite de alguns happy few.

Verdes Anos: entre 1963 e 2023.

Sessenta anos. Sim. João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata apresentam o resultado minucioso de seguir as pegadas, os enquadramentos, e o gesto de cinema de Rocha, em redor de Isabel Ruth e Rui Gomes, nesse oscilar constante entre a cidade e o campo, a modernidade do cinema e o atraso lusitano. Assim mesmo, ao longo de uma cartografia muda (sem diálogos) e rigorosa da cidade de Lisboa. Sem antes nem depois. Como se tratasse de uma répérage arqueológica aos locais visitados por Paulo Rocha, há meio século e mais uma década. E a pouco mais de uma década do dia da Liberdade.

Nesse sentido, este novo filme constitui, não só um gesto de homenagem, mas também a tentativa de auscultar um olhar novo para o cinema que sacudiu algumas teias de aranha do passado. E a forma dos ‘Joãos’ reivindicarem para si também parte desse espaço urbano, não só pela proximidade que sentem, mas também por uma filiação aggiornada da história do nosso cinema. 

Vale muito a pena percorrer as idas e vindas de Ruth e Gomes ao longo dessa fronteira bem demarcada, entre a modernidade das Avenidas Novas até ao que é hoje o Parque da Bela Vista, entre os mirones de outrora e os skaters e desportistas de hoje; ou entre as limitações da censura da época e as imposições do confinamento motivadas pela pandemia vividas durante a rodagem do filme.

No fundo, são essas as nuances que a cidade nos dá e ensina. É bom perceber ainda como muito da mesma cidade ainda lá está. Talvez por isso, continua a fazer sentido o apelo musical do filme, evocando a letra da canção Verdes Anos, entre a interpretação original de Teresa Paula Brito, na altura, ou a versão cantada pela própria Isabel Ruth no palco do Ideal. 

Isabel Ruth, ao vivo, no Cinema Ideal.

E foi mesmo a trautear a letra da canção que seguimos, ao descer a Rua do Alecrim, reimaginando um rewind que nos levaria ao túnel do outrora mítico Texas Bar, hoje na zona mais conhecida por ‘pink street’, e espreitar pela porta para tentar perceber onde fora rodada a cena cortada pela censura. Isto antes do final reimaginado, junto ao Vá-Vá, com o efeito de grua desejado por Paulo Rocha e agora concretizado na apoteose musical com Isabel Ruth.

Era o amor
Que chegava e partia
Estarmos os dois
Era um calor, que arrefecia
Sem antes nem depois.

Era um segredo
Sem ninguém para ouvir
Eram enganos e era um medo
A morte a rir
Dos nossos verdes anos.