Este é um filme que fala do movimento das coisas. E das pessoas. E fá-lo de uma forma quase discreta, como se o potencial de desejo das personagens fosse possuído por uma possibilidade de sonho, por uma ligação mais forte a este planeta. No fundo, acreditando que algo as poderá elevar acima da mera figuração das suas próprias vidas. As personagens são Vítor, Fátima e Júlia, ou seja, Carloto Cota, Sandra Faleiro e Valeria Bradell, ou seja, neto, filha e avó. A partir deste trio vai Diogo Costa Amarante descascando as diferentes conexões que se estabelecem ao longo da sua fascinante longa metragem de estreia que se deixa circular livremente pelas ruas do Porto. Sim, chega esta semana às salas um dos grandes filmes portugueses do ano, depois de um mundo de desafios e uma pandemia que adiou todo o entusiasmo. Ficou a resiliência. E a vontade de falar do projeto.
Ok, ‘estamos no ar’, que é como quem diz, a emissão de rádio ou televisão passa a ser partilhada pelo éter das coisas. No nosso caso, a conversa com o cineasta estabeleceu uma ligação entre a janela do monitor com vista para o Brasil, onde o filme está a concurso na Competição Novos Diretores da Mostra de São Paulo. Isto antes de ser visto em Sevilha e nos Caminhos do Cinema Português, em Coimbra, já depois da sua passagem pela competição do festival de Roterdão, no início do ano. Este é também um diálogo recuperado após a vitória do Urso de Ouro na Berlinale, em 2016, com a curta Cidade Pequena, onde, já na altura, era mencionada a primeira longa que ia escrevendo. E também após Luz de Presença, já em 2021, a curta que abriu um caminho natural para Estamos No Ar.
Observemos Júlia que visita a campa do falecido marido, verificando que ele cuidou do seu destino reservando uma lápide com o nome dela a seu lado. À companheira (Cucha Carvalheiro) confessará que não quer ir para debaixo da terra, “quero ser cremada!” Mas nem tudo corre bem entre ambas, pois às vezes, a companheira sente-se abandonada e queixa-se (com a voz de Luís Miguel Cintra!); atentemos em Vítor, um jovem bem parecido que usa o uniforme de polícia para os encontros amorosos, mesmo quando sonha com o amor verdadeiro do jovem modelo brasileiro (João Pacola) que vai dançando no seu telemóvel; já Fátima confessa à amiga Ivone (Anabela Moreira) que não sente nada, apesar der umas ‘mamas novas ainda por estrear’ e de lavar com zelo a farda do (verdadeiro) polícia que mora ao lado (Romeu Runa) e de travar uma verdadeira batalha com um rato na cozinha que não a respeita. Sim, até os animais neste filme são autorizados a sonhar. Como um camaleão que veremos num momento de comunicação com uma barata…
De forma perspicaz, Diogo Costa Amarante vai construindo um microcosmos em que o singular se funde com o global e que é habitado por seres lunares que anseiam levantar voo. Ao menos sentir algo que lhes dê um certo impulso (ou colo!) nas suas vidas. Nós interessamo-nos por eles, mesmo indiferentes à sua orientação afetiva. Afinal de contas ‘estamos no ar’. Por sinal, um dos momentos mais insólitos do filme acontece quando uma patinadora insinuante e colorida surge, fulgurante, oferecendo à idosa Júlia a possibilidade de Júpiter quando a Terra não nos dá o que precisamos. Não só nesse plano, como em diversos outros, percebe-se a liberdade da câmara de Sabine Lancelin, que assegurou a imagem da derradeira fase da carreira de Manoel de Oliveira, permitindo-nos abrir os olhos ver um pouco mais além.
“Digamos que há um filme interior na cabeça”, começa por dizer Diogo do lado de lá do ecrã. “Há qualquer coisa que os mostra fechados sobre um drama individual, mas que irrompe por todos os lados.” Por falar em ecrã, é o espelho pixelizado da televisão que vai ligando estes entes familiares, pois tanto avó como neto vão fazendo figuração para um daqueles programas de entretenimento da manhã (ou da tarde). E que a filha vai seguindo e confirmando que os ‘seus’ estão bem. Sendo que cada um tem os seus pequenos vícios, seja as raspadinhas da avó (Bradell), algo em que o realizador se inspirou no lar onde estava a sua própria avó, mesmo ao lado de uma casa de grande movimento na procura destes cartões (de sonhos) coloridos; seja o uniforme de polícia do neto (Cota) que o empodera nas suas relações e que provoca também alguma confusão de identidades, desde logo, com a mãe (Faleiro) pois lava graciosamente o do vizinho desejado.
Ao fim e ao cabo elementos (e emoções) que acabam traficados (transfigurados ou travestidos) ao longo da fita. “Apesar de não querer estar com grandes parangonas, acredito que o cinema pode dar uma perceção de quem o faz e do mundo onde está,” refere como forma de posicionamento consciente. Nem que seja visto através de um ecrã fora do cinema, como a visão um pouco mais redutora da televisão. “A ideia da televisão tinha que ver com uma sensação de estarmos a ficar um bocado figurantes, afundados na ideia de que as pessoas se medem por números.” Esta uma ideia de base do cineasta de 42 anos. E são esses ‘números’ e a forma como cada vez mais as pessoas se reduzem a números que estará na génese da continuação do próximo trabalho, ainda embrionário.
Se se disser que Estamos no Ar aborda uma temática queer, não significa a gaveta de um qualquer discurso identificador – e, por isso mesmo redutor – que normalize o elo entre estes solitários, embora só aparentemente longe uns dos outros. Talvez seja até irresistível a tentação de associar a este filme o nome de Pedro Almodóvar, pelo menos na sua fase de euforia madrilena. Ainda que o seu último filme O Quarto ao Lado, vencedor do Leão de Ouro de Veneza, com estreia marcada para o próximo mês, pertença a outra época, a outro planeta. Ainda assim, pelo menos do nosso ponto de vista, não se eleva a Estamos no Ar. E não apenas porque as emoções do espanhol, nascido em Calzada de Calatrava, jogam num sentido diametralmente oposto às do português, nascido em Oliveira de Azeméis.
“É óbvio algo que está lá algo,” assume Amarante diante essa referência, explicando que está “absolutamente confortável com isso. Quando era jovem, foi um cinema me marcou muito, talvez porque era um discurso que eu não tinha. Só não acho que seja algo vincado, como fazendo parte de uma espécie de tribo. Normalmente, o cinemaqueer apresenta uma estética muito reconhecível, muito recortada.” O que se sente é que o filme procura, de alguma forma, e bem, desmontar essa ideia, libertando-se do que poderia ser uma designação e aproximar-se de algo mais genuíno.
Seja como for, num país onde fazer cinema é assumido quase como um verdadeiro ato de resistência artística, por vezes, é necessário sublinhar o verdadeiro propósito do autor. Para que não restem dúvidas, Diogo esclarece: “é uma verdadeira falácia ontológica achar que os realizadores não se preocupam com o público. Um filme é para ser visto. Contudo, o foco principal não deve ser esse. Porque até a falha é importante. Se a única forma de garantir o sucesso é funcionar como funciona a indústria, então fazer um filme deve bater certo com aqueles índices que motivam as séries. Mas isto assim é só negócio. Se fossemos por aí não tínhamos história do cinema português. Não tínhamos o Oliveira, o César Monteiro…” Não tínhamos o Diogo Costa Amarante.
É precisamente ao esmiuçar essas fragilidades que se sente o convite para um certo retrocesso. Até porque, entende que “a partir das três personagens do filme falamos de uma vulnerabilidade que é a nossa. Alienas-te nos braços de alguém, tipo a tua mãe, onde estás aconchegado. E, de repente, o que é que nos é oferecido? Um produto. No fundo, a ideia de um objeto de desejo que se oferece para dar sentido, mas que não resolve.” É o tal tráfico de que falamos que talvez nos possa elevar. Como refere, a certa altura, uma espetadora do programa televisivo, ao relatar a sua experiência com heroína, comparando-a a “ser tocada no corpo todo por uma infinidade de dedinhos”.
Resumindo, todos precisam de ação para não rebentar. Porque a vida é só movimento, como se diz no final do filme. Pois estamos todos dentro de um certo movimento. O movimento das coisas. Seja até ao ritmo dos Tame Impala ou dos Sensible Soccers que asseguram a bela banda sonora. Ou até de Diana Neves Silva ao interpretar Lena d’Água a cantar sempre que o amor me quiser… É isso.