Domingo, Janeiro 26, 2025
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Pacheco Pereira Mostra que Somos Humanos

Mas adverte: "As maiores vítimas dos direitos humanos são as mulheres"

O historiador, pensador e arquivista José Pacheco Pereira aceitou o convite da Associação Somos Humanos e veio ao Montijo para a inauguração da Mostra Que Somos Humanos. Este um evento que irá estender-se ainda pelas cidades do Barreiro e Almada, além de Lisboa, pelos eventos na Universidade Nova – FCSH. Este momento ainda acompanhado da inauguração da exposição Humanos Apesar de Tudo, da associação russa Memorial (prémio Nobel da Paz, em 2022), cedida pela Associação Meeting Lisboa. O objetivo foi uma auscultação sobre os desafios que os direitos humanos enfrentam neste cada vez mais atribulado século XXI. Foi na Ermida de Sto. António, outrora um lugar de culto, desde os idos de Quinhentos, quando essa antiga igreja foi erguida, que José Pacheco Pereira enriqueceu todos aqueles que foram desviados dos decorativos afazeres da quadra natalícia. De certa, um espaço adequado para evocar a ideia de sanctuary, no fundo, o direito de refúgio dos perseguidos e de todos os carentes de direitos humanos. Como as mulheres.

Pacheco Pereira começou por constatar que “nos últimos 200 anos, há menos países com pena de morte, menos prática sistemática de tortura, e até um incremento da condição feminina. Há ainda, em muitos casos, um incremento da liberdade de expressão, da liberdade de organização, da liberdade política.”

Este estado de coisas é acompanhado por “um retrocesso que seria inimaginável há 10 anos atrás.” Algo motivado pelos diversos conflitos atuais, desde logo, na Europa, na Ucrânia, bem como no Médio Oriente, na Palestina, na Síria, no Irão, no Líbano. Até os conflitos em África, “onde ocorrem os maiores massacres, as maiores violações dos direitos humanos. Por exemplo, no Sudão, onde ocorre uma guerra de que praticamente não se fala.”

Os direitos humanos e a Revolução Francesa

Na verdade, como explicou aos presentes, “a ideia de que existem direitos humanos é uma ideia relativamente recente. Data, em bom rigor, do impacto da Revolução Francesa que introduziu, pela primeira vez, uma noção laica do funcionamento das sociedades. E a ideia de que a felicidade era um elemento fulcral para pedir a qualidade do país, de um povo, de um regime político.”

“O Saint-Just – (Louis Antoine de Saint-Just, 1767-1794, inspirador da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1793 – morre com apenas 26 anos) – é um dos revolucionários da Revolução Francesa. Um jacobino que foi executado. Ele tem uma frase que mostra muito bem o grande impacto da Revolução Francesa. E essa frase é: ‘a felicidade é uma ideia nova na Europa’. E isto é radicalmente novo e revolucionário para a época, porque significa que é a felicidade dos homens em vida que importa. Antes da felicidade ser ideia nova, a ideia dominante era que os homens estavam na Terra para uma espécie de prova. Ou seja, a felicidade estava sempre fora da vida. Era no Paraíso. A ideia que o objetivo das sociedades pós-Revolução Francesa era, essencialmente, a felicidade terrestre, e não a felicidade celeste. Isso trouxe não só as ideias da Revolução Francesa, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, mas também a ideia presente na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de que há um conjunto de direitos do homem que são fundamentais, quase genéticos em relação ao funcionamento da Humanidade.”

Mais direitos humanos para as mulheres!

As mulheres eram sempre consideradas uma parte menor da sociedade.

Sobre este tema, Pacheco Pereira foi muito claro: “A ideia de que os direitos do homem são uma forma natural de vida em sociedade, é, na verdade, uma ideia ocidental e europeia, na medida em que muito daquilo que é a formulação dos direitos humanos não corresponde a muitas culturas.”

E prossegue: “houve até uma travagem daquilo que é, no fundo, um dos direitos fundamentais. Ou seja, a igualdade entre as mulheres e os homens. Só que as maiores vítimas, em qualquer caso, são sempre as mulheres. Porque as mulheres têm sempre uma posição secundária, sempre com propriedade de alguém, com propriedade da família, com propriedade dos irmãos, com propriedade da família. Teve de se fazer um referendo para que as mulheres passassem a ter também direito de voto. Em Portugal, à data de 25 de abril, as mulheres não podiam ser diplomatas, em alguns casos não podiam sair do país sem autorização dos maridos. Portanto, eram sempre consideradas uma parte menor da sociedade.”

Sobre os direitos fundamentais

“Os direitos fundamentais são o direito à vida, o direito de não serem presos de forma arbitrária, de não serem torturados, de não serem sujeitos a pena de morte, a violências e maltratos, e terem também os direitos civis que são aquilo que é fundamental na democracia: o direito de voto, de poder de escolher os seus governantes e o direito da liberdade de expressão.”

“Os direitos, aqueles que nós chamamos de direitos humanos, são uma coisa precária. Há categorias, é bom que elas existam, é bom que elas estejam codificadas, é bom que elas façam parte do direito internacional, mas isso não significa que não seja precária a sua aceitação. E há casos em que os Estados, deliberadamente, decidem não os aplicar, como sucedeu com os Estados Unidos no ataque ao Iraque, ao Afeganistão. Ou quando aos prisioneiros de guerra não são considerados prisioneiros de guerra. Como os que estão em Guantánamo e que não têm nenhuma espécie de direitos, não têm acesso a advogados, nem a qualquer tipo de julgamento. São apenas presos políticos.”

“Neste momento, temos vários conflitos preocupantes: o conflito na Ucrânia, o conflito em Gaza, e agora também na Síria, de que nós estamos apenas a conhecer os primeiros passos. A Família Assad era uma família de enorme crueldade. Mas isso não significa que quem a derrubou tenha um estatuto de menor crueldade. Aqueles homens que estão agora no poder cortaram cabeças dentro do Estado Islâmico. É difícil saber como vai ser o futuro. Particularmente, quando a versão do Islão que é dominante é salafita, uma facção fundamentalista do Islão, com proximidade com a Arábia Saudita, a quem nós fechamos os olhos, por causa do petróleo.”

“A questão dos direitos, das liberdades e das garantias é uma história muito complicada, embora, de um modo geral, até há relativamente pouco tempo, tende a melhorar. Sobretudo, na Europa, bem como nos Estados Unidos. Mas é também nos Estados Unidos onde se sente um relativo retrocesso. Desde logo, com o banimento de certos livros nas bibliotecas escolares, uma certa perseguição baseada em racismo. E agora com o Trump vai haver um corte muito significativo de fundos para todas as universidades da tradição liberal, além de para todas as universidades mais importantes dos Estados Unidos. O que se vai traduzir também numa penalização da liberdade de expressão. Isto num país que, em diversos aspetos estava mais avançado que a Europa. Por exemplo na garantia da liberdade de expressão.”

Com o cartaz da exposição Humanos Apesar de Tudo, cedida pela associação Memorial.

Os direitos humanos dependem de nós!

“Direitos humanos, democracia, liberdade são ideias com fragilidades. Mas essa fragilidade advém dela depender de nós, pois elas não são naturais. É a cultura, no sentido lato, que pode ajudar a democracia. Desde logo, através dos seus mecanismos de controle. No entanto, esses mecanismos estão a perder força, o que pode ajudar à degradação do funcionamento da democracia, fazendo que conflitos venham à superfície. Isso permite que o populismo explore esses conflitos de uma forma muito direta, pondo em causa aquilo que nós considerávamos ser direitos fundamentais.”

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