Detenhamo-nos na alegoria poderosa que opõe o conflito entre a tradição e a modernidade, a liberdade feminina e a opressão do patriarcado religioso. É como se este ‘figo sagrado’ invasivo fosse lentamente estrangulando a alma e as raízes da cultura autocrática iraniana. Mesmo dentro do núcleo familiar. Felizmente, o cinema tem um lado de ato de resistência que devolve peças admiráveis como este trabalho idealizado durante um tempo de encarceramento, e depois concebido de forma clandestina, por um realizador exilado e forçado a fugir de uma pena agravada.
É bastante coerente a obra de Rasoulof e decidido o dedo que aponta à injustiça do sistema iraniano: seja quando se reconhece nas escolhas morais de um homem íntegro, em Lerd (2017), ou nas entrelaçadas histórias sobre a moralidade e a pena de morte, evidenciadas em O Mal Não Existe, de 2020. Isto para citar apenas os seus filmes mais recentes, embora sempre evidenciando e questionamento da liberdade debaixo de um regime despótico.
É fácil de perceber que a ação deste novo manifesto social e político decorre em pleno período de contestação nas ruas de Teerão. E que são abundantes as imagens violentas captadas por manifestantes, durante o movimento “Mulher, Vida, Liberdade”, em luta pelos direitos civis das mulheres, e dos direitos humanos em geral. Será até na sequência do aumento de detenções que o oficial de justiça Iman (Zare) acaba de ser promovido à pressa a investigador e juiz do tribunal revolucionário. No fundo, mais mão-de-obra para despachar as detenções e assinar sentenças de morte.
Talvez essa ascensão na escada social lhe permitisse oferecer a tão desejada máquina de lavar a Najmeh (SoheilaGolestani), a mulher crente na vontade divina do regime autocrático. E até, quem sabe, aventurar-se na aquisição de uma casa com quartos separados para as filhas, Rezvan (Mahsa Rostami), a mais velha, já na universidade, e Sana (Setareh Maleki), ainda a frequentar o liceu. Ao contrário da mãe, ambas estão bem cientes do mundo em que vivem e da agitação nas ruas que acaba por ferir uma das suas amigas, ao ser atingida no rosto com um disparo de cumbo grosso que a cegou.
Rasoulof transporta-nos mesmo para um ambiente de thriller psicológico e claustrofóbico, ao introduzir naquela casa uma pistola para defesa pessoal, mas que acaba por desaparecer e abrir um terreno de suspeita doméstico. Mais adiante, na fase final deste filme de quase três horas, mas onde nunca olhamos para o relógio, este ambiente de porta fechada, dominado pela ausência da arma do poder, abre-se para um road movie em terreno aberto em que a dimensão mais ancestral irá chocar de frente com a modernidade das filhas. E de uma forma, algo brutal, fazer cumprir o desígnio da fábula do figo sagrado.
A Semente do Figo Sagrado foi um dos filmes que marcou a diferença este ano no festival de Cannes – conquistou o Grande Prémio do Júri, o prémio FIPRESCI, além do prémio ecuménico. A este reconhecimento, entre diversos outros prémios, junta-se ainda o prémio de melhor filme no LEFFEST, que o realizador recebeu em Lisboa. E, sim, está entre a lista dos cinco candidatos ao Óscar do melhor Filme Internacional, em representação da Alemanha, o país para onde fugiu e terminou a produção.
É esta a força do cinema iraniano engajado.