Sábado, Maio 3, 2025
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A Savana e a Montanha: o cinema feito arma do povo!

Levanta a cabeça, tira os olhos do chão;

se a vontade esmorece, sacode-a com um abanão.

Porque agora a hora é de lutar!

(‘Hora de Lutar’, de Carlos Libo) 

A Savana e a Montanha, de Paulo Carneiro, estreou no dia 25 de Abril. Trata-se de um filme em forma de canção de intervenção, onde a aparente ficção esconde uma realidade que importa conhecer.

Fazer cinema de intervenção nos tempos que correm é obra! No caso de A Savana e a Montanha, de Paulo Carneiro, é obra. Não pretende ser uma obra-prima, pois não é isso que importa. É sobretudo um filme para parar uma obra: no caso, a mineração do Barroso, tendo em vista a lucrativa extração de lítio. Neste Dia do Trabalhador, recorda-se a importância de conhecer A Savana e a Montanha, agora nas salas, depois da sua estreia mundial no festival de Cannes. na Quinzena dos Cineastas.

Foi no dia 24 de Abril, nas vésperas da celebração do primeiro ano de Liberdade, que a cantiga subiu à Rua do Loreto, ali mesmo, no Cinema Ideal, na antestreia do filme, e num espaço que se lembra ainda também de ter sido a primeira sala de cinema de Lisboa. Foi bonito o final com toda a equipa a cantar em palco: “Não passarão, não passarão! Não passarão, não passarão!”

Antestreia no Cinema Ideal: Ana Isabel Strindberg, da Portugalfim, Paulo Carneiro, realizador, juntamente com elementos de Cova do Barroso..

É clara e natural a ligação que brota do cinema de Paulo Carneiro. Como que registando a sua própria ontologia própria, devidamente ancorada no ambiente natural que o rodeia. Assim foi em Bostofriooù le ciel rejoint la terre, de 2018, onde o cineasta assumiu o papel de investigador da história do seu avô, procurando respostas entre os silêncios e os segredos do mundo rural de Boticas; veio depois Via Norte, onde se retrata a realidade da emigração lusa, ao fim e ao cabo, a dos seus pais, refletida aqui no fascínio reluzente e ruidoso dos automóveis transformados, encarados como um elemento vistoso, mas também como uma como paixão, e até uma forma de superação social. 

Em A Savana e a Montanha, Paulo Carneiro regressa ao concelho de Boticas, em Covas do Barroso, a região alvo de acompanhamento mediático, sobretudo desde a descoberta de minas de lítio, na verdade, as mais relevantes da Europa. É aí que entra em cena a empresa Savannah Ressources (os indígenas) mas também a oposição dos transmontanos (os cowboys deste Western improvisado) estes muito mais preocupados com os seus terrenos, em risco de serem trocados pela mera possibilidade de potenciaríamos o aumento de produção de carros elétricos no mercado europeu. É nessa clivagem que assenta o elemento de género western, por certo inspirado no humor festivo normalmente depositado nas comemorações carnavalescas. Algo ampliado até pelo registo de intervenção das canções e o talentoso acutilante do músico e intérprete Carlos Libo. Isto, por certo, apenas nas pausas do tratamento dos seus cavalos.

A ficção da realidade e uma forma de luta que nos liga ao que é importante.

Apesar da inspiração festiva e fantasiosa, a verdade é que a comunidade de Covas do Barroso quer mostrar que não está ‘para carnavais’ e acaba por ‘levar a mal’ a dita disputa, assumindo-se, ela própria, como personagem do filme – como sucede aliás, nos filmes anteriores de Paulo Carneiro, em que o suporte documental apenas serve de base a uma história que o cinema suporta com o seu dispositivo. Algo assente em planos rigorosos, apoiados por uma representação que não deixa de nos recordar um tal Manoel de Oliveira, quando pretendia deixar passar esse lado assumida de representação. Só que Carneiro está, desta vez, fora da tela. Pois, para ele “a defesa é sempre do cinema”. Ou seja, fica o gesto da teimosia de cinema. Mesmo quando o seu filme foi ignorado pelo ICA. No entanto, nesta altura, mais do que falar do filme, importar partilha a voz daqueles que o fizeram. Aqui fica a luta do povo de Covas.

Para Paulo Carneiro, A Savana e a Montanha ” começa por ser um documentário, embora também com muita ficção”, diz com origem em Bostofrio, a localidade do seu primeiro filme, ali bem perto de Covas. Foi, aliás, a seguir à estreia de Bostofrio que Carneiro é abordado por algumas pessoas de Covas, acabando por fazer germinar a ideia do filme. No caso, um filme sobre um aluta cujo ‘inimigo’ não se vê. Entra então em cena a ironia, ligada ao carnaval tradicional. “O filme cresce à volta desta ideia”, explica o seu autor. “É aí que começa a ficção.” Ou seja, fazer o filme com uma metodologia muito própria, onde até “também nos divertimos”, como salienta. 

O cineasta explica-se: “O western parte deles, das pessoas em Covas do Barroso que são muito irónicas. Foram eles que propuseram esta alusão dos cowboys contra os indígenas. No fundo, pego nisso e amplifico e faço-o na relação das cenas umas com as outras. E vamos construindo todo esse universo que me interessava. Porque, na verdade, no filme não há tiros, não é? É sempre uma ironia, ou seja, tentamos passar a forma de ser deles. Apesar de tudo, é bom conseguirmos rir-nos de nós próprios. Porque toda essa luta de secretaria é muito pesada. Sobretudo para alguém que está habituada a um trabalhão prático.” Ou como diz a canção de Libo, “junta-se à luta, vamos vencer!”

Em todo o caso, esta luta tem sido algo frustrante para o povo de Covas, a primeira região em Portugal a ser classificada como Património Agrícola Mundial. E que corre agora o risco a ser a primeira a perder esse selo, em nome da indústria automóvel. Ao fim e ao cabo, “uma narrativa imposta para salvar o planeta, usando mais carros elétricos. Só que isso não vai resolver absolutamente nada”, refere um dos habitantes de Covas, presente na sessão de apresentação do filme, acabando por corrigir a teoria politicamente correta: “Se continuarmos a manter o mesmo modelo de desenvolvimento, desta forma desenfreada, isso não vai resolver problema nenhum. É por isso que nós estamos aqui hoje. O Barroso não foi classificado por qualquer motivo; foi classificado porque é um exemplo que devemos seguir. “

Como sustenta um investigador, temporariamente em Barroso, e que já tinha estado envolvido em movimentos anti mineração a céu aberto, no Equador. Explica ele algo que poderá não ser do conhecimento de todos: “O património agrícola mundial é atribuído por ser um exemplo no combate às alterações climáticas. Nós estamos a querer justificar estes projetos por eles serem necessários ao combater das alterações climáticas.” Completa ainda referindo que “a indústria automóvel vê aqui uma oportunidade de mercado. Só que a resposta que devemos de dar é que esta transição energética só vai criar novos problemas.”

Carlos Libo, com um dos seus cavalos que fazem parte do seu modo de vida.

Ou como refere Carlos Libo, o autor das canções de intervenção que se fizeram hino desta, mencionando o risco de destruição de um terreno comunitário que acabará com a maneira de viver e de muita gente da localidade. “É por isso é que estamos a lutar”, diz. “E foi por isso que fiz as canções, como uma forma de luta. Como dizia o Zé Mário Branco, a canção e uma arma!” Por isso, cantamos: “Não passarão, não passarão! Não passarão, não passarão!”

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