A presença de Edgar Pêra, cineasta de vanguarda e experimentalista, constituiu um dos temas centrais desta edição, que promoveu o debate em torno da Inteligência Artificial. E, naturalmente, o seu mais recente filme Cartas Telepáticas, totalmente criado por IA, em redor das conexões filosóficas e artísticas das obras de dois gigantes da literatura, como Fernando Pessoa e HP Lovecraft.
Na conversa que se seguiu após a projeção do filme – exibido o ano passado em Locarno, fora de competição, e produzido por Rodrigo Areias e Bando à Parte – Pêra levantou um pouco o véu por detrás do efeito avassalador e experimental na cine-conferência, no Teatro Sá Miranda.
“Há muito que a ideia do encontro entre o Lovecraft e o Pessoa existia nos meus cadernos e livros”, confidenciou Edgar Pêra a uma plateia composta por cineclubistas, professores, estudantes de cinema e público. “Um dia, comecei a criar imagens com Pessoa. É um sonho para qualquer um dar imortalidade a tantas identidades de Pessoa. De repente, tinha à minha disposição um batalhão de personagens. O mais importante para mim, no entanto, é preservar este património de memória e fazer com que as pessoas sintam vontade de rever os filmes”, afirmou.

“O que me interessa, sobretudo, é isso. Muitas vezes, quando começamos a fazer cinema, queremos fazer filmes que nos toquem. Fazemos os filmes que nos dizem respeito, aqueles sobre os quais temos maior conhecimento e em conseguimos agir com verdade”, destacou Pêra que se tem posicionado na linha da frente da integração de tecnologias avançadas nos seus projetos. Desde o uso do 3D às mais recentes incursões com IA. O seu interesse por Pessoa, tal como por Lovecraft, revelou-se ideal para uma exploração surreal e perturbadora, permitindo uma extensão metafórica e visual da palavra de ambos os escritores.
Em Cartas Telepáticas, a mente fervilhante de Edgar Pêra imaginou uma espécie de troca de correspondência fictícia entre Pessoa e Lovecraft, algures entre o questionamento existencialista e metafísico do autor português e o universo de terror cósmico e antropocêntrico do escritor norte-americano. Como explicou, a sua liberdade limitou-se a incluir as expressões ‘caro Pessoa’ e ‘caro Lovecraft’, numa tentativa de assinalar e aproximar os universos criativos de ambos.
As imagens que compõem o filme não são deepfakes convencionais, mas sim criações generativas, o que significa que a sua aparência se altera de acordo com as “alucinações” da IA. Um dos méritos de Cartas Telepáticas reside na fusão da reconstrução documental, através de múltiplas fotografias que recriam padrões de personagens dos anos 20 e 30, optando por uma abordagem ensaística que justapõe pensamentos e estabelece um frutuoso diálogo ficcional. Assim, surgem criaturas de contornos reptilianos deformados, renderizadas dentro de um tecido estético de pesadelo apocalíptico.
Pêra atreve-se a apresentar Pessoa e Lovecraft como “cabeças falantes”, alteradas em cada trecho, frequentemente desafiando os limites do surrealismo, com transições do normal ao grotesco ou prolongamentos tentaculares — ou seja, transportando ambos para o peculiar universo surreal de Lovecraft. “A IA é precisamente isso. Permite a criação de arquivos falsos, um património do passado atual, com filmes surreais que nunca existiram, mas que poderiam ter existido. Isso está também relacionado com a luta contra a estética de Avatar, todas aquelas imagens glossy e rostos azuis, luz de estúdio, etc.”, explicou o autor, que dedicou dois anos à realização de Cartas Telepáticas.




A tudo isso se junta ‘o fator Pêra’, como o próprio explica: “eu tenho tendência a complexificar tudo e não fico contente com nada que não crie a necessidade de revisitarem os filmes. Portanto, tenho que pôr sempre uma dose maior do que aquela que é óbvia para assimilar um filme. ” E atira a pergunta: “Quantos de vós continuam a achar que o cinema é uma forma de arte?”. Dissipando quaisquer dúvidas, acrescenta: “Convém não confundir um eletrodoméstico com isto.” Mas acaba por revelar: “Tenho fascínio pelos brinquedos. Sempre que aparecia um brinquedo novo e barato, eu comprava. Gosto quando as máquinas proporcionam uma nova perceção da realidade. Adoro transformar, mas parto sempre da realidade. “
Relativamente ao uso inadequado da inteligência Artificial, Edgar é claro: “Faz-me confusão ver a diabolização constante dos media. As pessoas ainda não compreendem bem o que é necessário para ocupar esse espaço, o espaço que se constroi no algoritmo.” Para ilustrar, oferece u exemplo concreto: “Imaginem o YouTube, onde escolhem ouvir as músicas que mais gostam. Ao insistirem, acabam por chegar a um YouTube quase perfeito. No fundo, é isso, não é? Mudar esse algoritmo. Ou seja, a I.A. pode ser uma ferramenta para fazer milhares de outras coisas.
No entanto, não hesita em alertar: “As forças do mal estão no TikTok e na IA. E as forças do bem, sendo uma minoria, não se atrevem a lutar nesses territorios. Se não conseguirem perceber o que se está a passar, vão perder cada vez mais espaço. A vitória pertence a quem dominar as técnicas do WhatsApp.”