Depois das três curtas, João Rosas entrega a longa. Aí está “A Vida Luminosa”. No fundo, uma continuidade que é muito mais que a presente recorrente de Francisco Melo. É a simplicidade vista pela luz do cinema. Agora, Rosas segue à procura da ‘luz’ na competição do Festival de Karlovy Vary (de 4 a 12 de julho).
Numa altura em que vêm à tona novas dúvidas sobre os passos titubeantes do nosso ‘cinema nacional’ e quando se exalta a afetividade das imagens com o público, com os críticos, os festivais, os programadores, os exibidores – eu sei lá -, vale a pena reparar em A Vida Luminosa e perceber como o cinema do João Rosas (lei aqui a entrevista) se está marimbar com esse ponto de vista ontológico, concentrando-se em devolver-nos um filme belíssimo. Apetece até dizer, em surdina, ‘por esta porta o cinema pode entrar’! E se o título até remeter (e bem) para uma afinidade rohmereana, não é por aí que o gato vai às filhoses. Há algo nessa partilha estival, nos espaços, nas conversas, nos amores que lhe fica muito bem e não carece de dívida.
A Vida Luminosa dá-nos então a ‘luz’, mas que não nos ‘ilumina’. Deseja antes passear connosco nas ruas de Lisboa, seguir mapas de geografia humana, arriscar no olhar dos outros e deixar-se levar por um sorriso. Em suma, sentir algo que que nos seja próximo. Apesar de todas as indecisões, de todas as dúvidas. Pois é isso que alimenta a narrativa, o embaraço do desejo, a paixão, vá se lá saber.
Um aviso à navegação: assumi que vi (e revi) as curtas do João Rosas antes da longa. Pois não conhecia ainda aquele primeiro olhar sobre a cidade, em Entretcampos (2013), faltava-me testemunhar o desejo corporal de Maria do Mar (2015), tal como aceitação da hesitação em Catavento (2020). E tornou-se até ponto assente de rever o filme, já depois da conversa com o João Rosas. A ideia não era simplesmente recuperar o mesmo Francisco Melo, com um certo ‘je ne sais quoi’ de Melvil Poupaud, depois dos 14-15 anos de rodagem, mas seguramente mais pelo gesto de cinema que se molda a partir de personagens, sem uma agenda definida para nos seduzir; antes inscrevendo-se nos lugares comuns de rodas de amigos e (tão bem) filmado no exterior ou em transportes públicos. Pois é nesses espaços que certas frases se dizem e têm o seu peso. E que uma câmara, quase sempre impercetível, ou com milimétricos movimentos, as testemunha, embora deixando todo o espaço para o acontecer. E olhem que não é pouco. Talvez porque fique (sempre!) no ar algo que nos faz querer manter a viagem.

Ah sim, o filme. O filme é sempre o Nicolau (Francisco Melo). Ou quase (como a sua banda Quase Nicolau). Esse garoto tornado jovem que não chegou a encontrar as certezas da vida. Vai então alimentando-se de incertezas (como tantos) e no poder do olhar. É a partir daqui e dos longos encontros com os atores que se vai escrevendo, como sublinha João Rosas na nossa entrevista. Parece fácil. Mas este é apenas o esquema (o mapa) de orientação para um filme que dança à nossa volta. Por sinal, filmado há exatamente dois anos, durante os santos populares, numa Lisboa vibrante e que apetece viver.
No fundo mais um elemento de proximidade a uma realidade que é, sim senhor, muito filmável. E que faz um vaivém curioso com os outros filmes, que depois queremos revisitar. Seja para reparar na t-shirt que transita de um filme para o outro ou o cartaz do Bowie que regressa a casa.
É então a partir dessa massa que se molda a continuação da história de Nicolau, agora a viver em casa dos pais – (o contrabaixista Bernardo Moreira e a cineasta Catarina Mourão), eles próprios com o seu imbróglio afetivo – na mó de baixo e sem grandes planos para o futuro, temperando relacionamentos inacabados com a “ressaca de um ano do último amor”. É isso que Nicolau vai confidenciando no ombro de Francisca (desde Entrecampos), acabando por se incapaz de reagir a todas as mulheres que dele se aproximam. E que cujos nomes têm de ser mencionados: são elas Cécile Matignon, Margarida Dias, Federica Balbi, Gemma Tria, Ângela Ramos e Francisca Alarcão. E talvez aqui até falte alguma ocasional… Ainda assim, Nicolau foge para a frente, navegando na tal dúvida anunciada na canção de abertura: “de todas as coisas, a mais certa, e sabida, é a dúvida”!

De qualquer forma, A Vida Luminosa (tal como todas as curtas) é também o João Rosas. Pela cumplicidade, pela projeção dos desejos e paixões. E tão bonita é a sequência na Cinemateca, com o grupo de amigos a ver Esposas Levianas, do Erich von Stroheim (1922), aliando a cinefilia ao olhar das personagens. Ou à história que cada um tiver (ou não). Talvez seja também essa a luz de que fala o título. A luz do cinema.
Ora, no meio deste percurso indeciso, Nicolau ainda contará bicicletas e acabará até por trabalhar numa papelaria e vestir-se de Pai natal. No primeiro dia de trabalho, o gerente ajuda-o com algumas dicas e ao primeiro cliente (o baterista Luís San Payo, ex-Croix Sainte) pedindo que avalie a sua compra (de 1 a 5). ‘Dou cinco’, é a resposta pronta. ‘Tanto?’, questiona o gerente. ‘Então dou zero’. E vai-se embora. Pois bem, então também dou cinco. Seguramente, não com a mesma leveza e humor, mas por tudo o que foi dito. E porque este belo conto luminoso, sobre os ‘verdes anos’ das nossas vidas, que bate certo em todas as notas. Mesmo sem desejar ser obra-prima.
