É de urgência o cinema de Mahdi Fleifel. Urgência em fazer. Urgência em ver! Entre quinta-feira (dia 17) e sábado (dia 19), o festival Curtas de Vila do Conde dedica um foco à obra confessional deste cineasta palestiniano evocando uma nação em suspenso. Uma semana depois, no próximo dia 24, será a vez da estreia nacional de A Uma Terra Desconhecida, a sua primeira longa metragem de ficção, distribuída pela Stone and the Plot. Se há filmes a ver em sala, este deverá ser a grande prioridade.
Esta não será a primeira vez que Mahdi Fleifel visita o nosso país. Em 2015, a curta Xenos, recebeu o prémio de curta/média metragem, no festival MDOC, em Melgaço, em 2015. Fleifel regressaria a Melgaço, em 2021, para apresentar 3 Logical Exits (2020), confirmando as boas memórias que guarda desse certame: “Aprecio imenso a intimidade desse festival. Estamos todos em conjunto e comemos juntos numa cantina. Foi lá que conheci o Pedro Costa”, referindo-se a uma oficina de verão dirigida pelo cineasta português.
Mesmo não sendo muito conhecido, Mahdi Fleifel é já um dos nomes grandes do cinema do Médio Oriente. O realizador palestino-dinamarquês, nascido no Dubai, em 1979, cresceu em salas de ar condicionado, na companhia de desenhos animados e os vídeos do Michael Jackson, até se mudar com os pais para a Dinamarca, um país praticamente desconhecido dos palestinianos. Influentes na sua formação terão sido também os inúmeros home movies do pai, um videófilo amador empenhado em testemunhar a realidade do seu território. De resto, vários excertos integram o relevador e multipremiado documentário biográfico A World Not Ours (2012). Este tem até uma ligação muito particular com A Uma Terra Desconhecida, um filme já com três dezenas de prémios em festivais internacionais. Isto após a estreia mundial, no ano passado, na Quinzena dos Cineastas, em Cannes.
Chatila e Reda: entre a realidade e a ficção
Entre os dois filmes existe um curioso raccord, ou uma rima que liga, num plano idêntico, o gueto Ain al-Hilweh, no sul do Líbano, esse espaço quase mítico onde mais de meio milhão de palestinianos foram deslocados a seguir à constituição do estado de Israel, em 1947, e ao início dos conflitos na região. No documentário de 2012, é o pai que mostra a região a Mahdi; na ficção do ano passado, são os primos Chatila (Mahmood Bakri) e Reda (Aran Sabbah) que contemplam o sonho do exílio na Alemanha, onde o primeiro deseja criar um restaurante de comida palestiniana.
Essa afinidade poderá até ser estendida às várias curtas apresentadas em Vila do Conde (vide caixa), onde alguns episódios são usados na ficção, seja a acompanhar a vida e os desafios de Reda Al-Saleh, o amigo que Mahdi filmou desde que ambos eram garotos e que será a inspiração para o seu filme, seja nas diversas férias passadas em conjunto em Ain al-Hilweh, ou mesmo, mais tarde, já no período em que Reda cede à toxicodependência, sem forças para lutar contra a falta de futuro, de nação e educação.

“Eu abordo este tema há mais de 10 anos”, esclarece Mahdi do outro lado do ecrã, durante a nossa recente conversa via zoom. “Documentei uma versão de Reda na vida real, e fiz dois filmes, A Man Returned (2016) e Three Logical Exits (2020). Infelizmente, ele acabou por morrer de overdose em Atenas. Portanto, Reda é baseado numa personagem real”, diz. Um pouco, dir-se-á – com todo o respeito pelas suas diferenças -, como o cineasta João Rosas acompanhou a personagem de Francisco Melo, durante um período semelhante (entre as suas curtas até à recente longa, o maravilhoso Uma Vida Luminosa, ainda em exibição). A curisidade é que João Rosas também está em Vila do Conde, em serviço de júri.
Mesmo que a realidade captada por Fleifel seja, em certa medida, o oposto de ‘luminosa’. Pois é a vida dos exilados, desenraizados, condenados à eterna procura. A par da angústia pessoal documentada nas imagens de A Uma Terra Desconhecida, soma-se o trauma do conflito entretanto deflagrado nos territórios ocupados.

O mesmo se dirá da personagem de Chatila, baseada num outro amigo, agora a viver em Londres trabalhando como engenheiro civil, como nos informa o realizador. E que lhe contou como como atravessou a fronteira até à Macedónia e ainda elementos macabros sobre a história que incluía a criança e a Tatiana, personagens que haveriam de figurar no guião de A Uma Terra Desconhecida. É aí que se contempla o estratagema de angariar dinheiro para ajudar Malik, uma criança palestina de 13 anos a viajar para Itália, fazendo-se acompanhar por Tatiana (Angeliki Papoulia, de Dogtooth, de Yorgos Lanthimos), uma amiga ‘da rua’ de Reda que se irá fazer passar por sua mãe. Essa, afinal de contas, a solução para adquirir documentos falsos e pagar aos intermediários que tentarão traficar uma viagem.
O resto das inspirações foi Mahdi buscar a outros filmes. Como as que o próprio Fleifel contribuiu para a rede social Letterboxd. E que vão de O Cowboy da Meia-Noite, de John Schlesinger (1969) a Ladrões de Bicicletas, de Vittorio De Sica (1948), a O Ódio, de Mathieu Kassovitz (1995), incluindo a aventura de refugiados à procura da ‘terra prometida’, em The Dupes, de Tawfiq Saleh (1972), adaptado justamente por Ghassan Kanafani. Mas há mais: o brasileiro Pixote: A Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco (1981), o japonês Kikujiro, de Takeshi Kitano (1999), ou o americano O Touro Enraivecido, de Scorsese (1980).
Aliás, a rodagem começou a 7 de novembro de 2023, precisamente um mês depois dos ataques do Hamas em Israel e da resposta belicista e desumana que se seguiu. “Durante a pré-produção, íamos acompanhando as notícias e o desenrolar dos acontecimentos. Apenas rezávamos, embora sabendo bem o que os israelitas estavam prestes a fazer”, confirma o cineasta de 45 anos. “Foi tudo muito difícil de assistir, pois parece que fazia parte de um plano. Entrei numa espécie de realidade alternativa, mergulhando numa crise existencial profunda, pensando nos meus conterrâneos a serem mortos e eu a tentar fazer um filme numa Europa segura e confortável.”
Talvez se perceba como um passado e convivência com imagens em movimento resultasse na inevitabilidade de Mahdi pegar numa câmara para dar uso às imagens. A notícia terá chegado à família Pleifel, não sem alguma apreensão, no final do ensino secundário, depois do jovem Mahdi ter descoberto A Lista de Schindler, de Steven Spielberg (1999), logo no segundo ano. Um filme que assume ‘não suportar’, embora admitindo o desejo de “um dia fazer a versão palestiniana dessa história”, ignorando o aviso paterno e da máxima “são sempre os vencedores que contam a história.” Vendo-se em águas profundas, adotou a solução pragmática: “seguir em frente, continuando a nadar, percebendo que os tubarões estavam atrás de mim!” O caminho prosseguiu na escola National Film and Television School, em Londres, onde estudou até 2009 realização de ficção com o britânico Stephen Frears e polaco Pawel Pawliokwski.
“O cinema é a força que conecta as pessoas”
Enquanto observamos Mahdi, chama-nos a atenção a tatuagem ‘HOPE’ inscrita no braço. Talvez seja essa impressão a sua força existencial. Um pouco como a resiliência dos refugiados Chatila e Reda, capturados algures entre o exílio e alienação de um povo. “É isso mesmo”, concorda Mahdi. “No entanto, se quisesse inventar esta história, sei que não conseguiria, pois seria incapaz de recriar a história do colonizador que se apropria da terra, argumentando que saíram dali há dois mil anos atrás. Mas que estão de volta. Portanto, a eles pertence aquele lugar, sentindo a legitimidade para nos expulsar.” Admite até com desalento “isto parece mais ficção científica!”, acrescentando que “não há nada que possamos fazer, a não ser estarmos focados e contar a nossa história.” E deixa a motivação: “Fazer um filme palestiniano já é uma declaração política. Embora os poderes instituídos não os queiram ver.”

Mas este é um filme que devemos ver. Vem ancorado na realidade e em diversas influências de intelectuais palestinianos. Desde lodo, o ativista e escritor Ghassan Kanafani, co-fundador da organização Frente Popular para a Libertação da Palestina, também autor de diversos livros, como Men in the Sun (1962), considerado “um dos mais admirados e citados trabalhos árabes de ficção moderna” (cuja adaptação cinematográfica foi absorvida no filme) e A World Not Our Own (1965), onde se percebe a proximidade no título atual. É até precisamente esse livro, entre outros, que Abu Eyad, o amigo revoltado de Mahdi, separa prestes a abandonar a sua casa para partir para o exílio, em A World Not Ours. Vive igualmente aí a presença tutelar do escritor e académico Edward Said: logo no início, pela legenda que menciona o ‘fado’ dos palestinianos em nunca acabar onde começam, mas algures, longe demais’, mas também visível num grafito na parede, numa das cenas em Atenas, na frase que emula Sócrates: “não sou palestiniano, nem árabe, nem europeu – sou um exilado. Edward Said”.
Sim, Mahdi Fleifei tem feito do cinema a cartografia do seu povo. Daqueles que vivem num gueto a vida toda, mas não desistem. Como o avô que testemunhou a Nakba, ou a grande catástrofe, em 1947, mas sempre se recusou sair de Ain al-Hilweh. Será então o cinema uma extensão, ou uma ‘arma’, capaz de superar a cegueira e a ignorância? Fleifel assente: “O cinema é a força que realmente nos conecta às emoções. Já tive pessoas a escrever-me a dizer que sentem que o Reda e o Chatila são como parte das suas famílias.” Foi o que sentimos também após uma viagem ao fundo da noite destes palestinianos, dos dias passados na espera, num dolce fare niente, entre charros e cigarros. Ou as partidas de futebol, um dos poucos escapes à sina no future, no work, no education! Porque a juventude de muitos, como a de Mahdi, foi também marcada entre campeonatos do Mundo – já que o Mundo não era deles! À parte da bola de futebol, as crianças habituaram-se a brincar com armas, primeiro de brinquedo, depois as verdadeiras.
Mahdi recorda até o presságio de Ben Gurion, alegando que os velhos morreriam e os mais novos acabariam por esquecer. “Acho que esse é o poder da narrativa que consegue transcender o espetáculo do Trump que assistimos hoje”, atira. “Uma espécie de reallity show em que todos sabemos que é falso, mas, ainda assim, assistimos e acreditamos.” No ar deixa-nos a proposta: “Talvez devamos voltar à velha máxima de Godard, quando dizia ‘eles tornaram-se no material da ficção, e nós no documentário’. Assim estamos presos neste presente, a tentar dar sentido à realidade que nos cerca. Sendo que a realidade palestiniana é mais estranha que a ficção” Mahdi Fleifel, dixit, um cineasta estranho numa terra desconhecida.
Curtas na memória

Passa muito pelas curtas metragens a vontade de Mahdi Fleifel em fundir a realidade com a ficção. Seja em 20 Handshakes for Peace ou Xenos, ambos de 2014, onde se ilustram as diferentes leituras permitidas pela artificialidade pífia do aperto de mão entre YItzhak Rabin e Yasser Arafat, a selar os acordos de Olso, em 1995, mas também a representação o ‘estrangeiro, o inimigo o ‘alien”, ilustrando como a sobrevivência dos que nada têm e que são empurrados para o furto ou os encontros sexuais nos parques de Atenas. Há um realismo profundo em A Man Returned (2016), captando a decisão de Reda em casar, abandonar Ain al-Hilweh, apesar de abertamente embrenhado na heroína. Em A Drowning Man (2017), Fleifel ensaia a ficção, já com Vasco Viana a assinar a fotografia, com a personagem ‘Reda’, de novo em Atenas, consumido pelo pesadelo da droga; ainda o curioso documento oral I Signed the Petition (2018), sobre uma conversa telefónica em que Mahdi reflete com o amigo Faris as eventuais consequências de ter participado num abaixo assinado dirigido a Thom Yorke dos Radiohead, para não tocar em Tel-Aviv. Por fim, 3 Logical Exits (2020), onde se repensem as alternativas dos que ficam (como reda). E que serão, segundo a amiga socióloga e investigadora, Marie Kortam, a droga – para consumir ou vender -, pertencer a um grupo islamista, ou a derradeira (e lógica) solução, emigrar. Como refere Reda, de passaporte falso na mão. “Assim que sair volto para buscar a família ou regresso num caixão”. Assim foi.
Cartazes do filme vandalizados
Acabados de colocar os cartazes do filme ‘A Uma Terra Desconhecida’, mas já chamaram a atenção. Parece uma ‘atividade organizada’, como a denunciada do Jose Pacheco Pereira, ontem, domingo, no programa O Princípio da Incerteza, na CNNP. Incómodo, talvez, por isso mesmo urgente ver!
(imagens cedidas pela Stone and the Plot, distribuidora do filme, e publicadas em redes sociais)




