Tratemos do elefante no meio da sala. Sim, The Post é um grande instantâneo sobre a liberdade da imprensa e o papel relevante dos media. Nesse sentido, é mesmo melhor filme que Os Homens do Presidente, o tal clássico de Alan J. Pakula, de 1976, que o filme de Spielberg evoca e antecede a sua narrativa. Apesar do clássico dos anos 70 se empenhar demasiado nos detalhes da pesquisa jornalística, encarada quase como se de uma investigação policial se tratasse, bem como do valor ético da procura da verdade e do valor das fontes, já Spielberg emprenha-se em recuperar os antecedentes da crise de Nixon, precisamente com o escândalo dos Papéis do Pentágono, assentando no tema e na conjuntura geopolítica da época, sem esquecer o dramatismo e a vivência do jornalismo nas redações. De resto, esta opinião foi mesmo confirmada depois de recuperar a memória na revisão de ambos os filmes. De um lado, o apelo a um certo romantismo da profissão, talvez um tudo nada exacerbada, em confronto, do outro lado, com o dilema do dever de publicação do escândalo, mesmo contrariando uma ordem da Casa Branca.
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Já agora, The Post sobrepõe-se também a O caso Spotlight, de Tom McCarthy, o vencedor do Óscar de Melhor Filme há dois anos, debruçado no escândalo, também verídico, de abuso sexual de menores, em 2002, implicando membros da igreja, tratado pelo Boston Globe. Isto apesar de Spielberg ter falhado muitas das nomeações para as que talvez fora concebido – por aqui não vamos ignorar isso, exceto as ‘obrigatórias’ de Melhor Filme e Atriz -, reafirmamos que The Post é superior a ambos. Spielberg faz mesmo cinema clássico, superando ainda as recentes reconstituições de época com fins políticos, como A Ponte dos Espiões, Lincoln e até Munique.
Spielberg volta assim a tocar as notas mais altas com um portentoso filme sobre o poder do jornalismo de investigação e a liberdade da imprensa. No caso, o papel do Washington Post no desfecho do escândalo Watergate. Este é também um Spileberg em modo Capra que saudamos e que toca fundo ao aflorar os valores da honra na imprensa, abordando a bolha que cresceu e explodiu com o Watergate. Aliás, voltamos a 1971 em 2017, até porque é aí que o filme acaba, podendo então ser encarado como uma verdadeira prequela.
No cerne está a publicação dos documentos oficiais e secretos conhecidos por ‘Papéis do Pentágono’, evocando um passado histórico de sucessivas administrações americanas que esconderam a humilhação da inevitável derrota no Vietname, contida em relatórios oficiais que davam esse desfecho como inevitável. Agitam-se assim as almas de sucessivos presidentes que subscreveram políticas danosas apenas para salvar a face. De Truman a Kennedy, passando por Eisenhower e até Lyndon Johnson, dando a necessária luz às políticas efetuadas em segredo e apertado controle político.
Esta pequena obra-prima não falha a missão e a responsabilidade alavancada no passado, embora seja igualmente um filme focado no presente, com uma óbvia aproximação à atual administração Trump e até aos recentes escândalos misóginos que assolam Hollywood e que motivam um verdadeiro woman power. É por isso mesmo o filme certo na hora certa.
Há muito para gostar em The Post. Desde o ambiente fumarento e o caos controlado vivido nas redações dos grandes jornais é desenhado de uma forma notável, fazendo ecoar o contínuo matraquear das antigas máquinas de escrever; sentimos também o nervoso miudinho à espera do deadline para por em marcha as rotativas, após o trabalho dos topógrafos.
Seguramente, uma visão nostálgica de um mundo hoje dominado pelo digital, pelo social network, ou seja, pela imprensa imediata e quase individual. Nesse sentido, a leitura da sentença final (passe o spoiler), já no final do filme, curiosamente é emitida pela secretária de redação ao telefone para toda a redação, é talvez o zénite mais Capra do filme quando se escuta o credo da imprensa que “a imprensa foi feita para servir os governados não os governantes”.
Notável o guião de Liz Hannah, de apenas 31 anos (co-produtora de Hitchcock/Truffaut, de Kent Jones) e Josh Singer (curiosamente, o argumentista de Spotlight). Mas apesar de ter sido originalmente concebido durante a administração Clinton, esse hiato de tempo acabou por o favorecer e conferir um adorno bem mais adequado a estes novos tempos. Não de Nixon, mas de Trump. Ele que tanto se tem insurgido contra a imprensa, sem contar com as alegadas maroscas com os russos e até a um passado recente, anterior à atual administração, em que supostas armas de destruição maciça motivaram a entrada dos EUA numa guerra com o Iraque. Enfim, mas isso já são leituras laterais.
E há também o tal woman empowerment veiculado por Meryl Streep a receber um novo papel à medida do seu talento, e com o condão de lhe motivar uma decisão dilacerante, de certa forma a fazer-nos lembrar A Escolha de Sofia (que lhe daria em 1983 o seu primeiro Óscar de Melhor Atriz, já depois de receber, em 1980, o de secundária em Kramer Contra Kramer).
Cabe-lhe a personagem de Katharine Graham, editora do jornal Washington Post, um negócio de família que geriu durante todo o período que iria culminar no escândalo Watergate. Com a rara possibilidade de levantar a voz feminina num mundo de fato e gravata, essa mesma personagem volta oferecer a Meryl uma nova nomeação, a 21ª da sua carreira.
Tom Hanks e Bob Odenkirk são os ignorados nas nomeações, apesar de Hanks estar à altura da situação, tal como Odenkirk a compor um robusto secundário. Em tempo de questionar o papel e a verdade dos media, ou as tais fake news, ou o publica-se a notícia, mesmo que depois se tenha de repor a verdade dos factos. Ou a publicação da lenda, quando esta se torna mais relevante (ou oferecendo mais share que a verdade), como em O Homem qua Matou Liberty Valance, de John Ford. Um dilema semelhante depara-se a personagem de Meryl Streep, como a de Tom Hanks igualmente inspirado num dos seus grandes papéis a exaltar esse lado febril do jornalismo, em outra personagem de inspiração ‘Capriana’, talvez mais próxima de um Cary Grant do que de James Stewart, talvez o ator mais próximo desse universo profundamente americano.
É claro que este tema desta magnitude poderia queimar as mãos de um realizador menos experiente. Mas Spielberg, numa produção conjunta da FOX e Dreamworks, soube transportar a bandeira dos tradicionais valores americanos. Algo que faz de uma forma muito convincente, graças ao tal guião urdido com pinças e articulado com uma montagem elegante que combina e funde de forma orgânica as diferentes ações e conversas paralelas. O estilo é subtil e discreto, mesmo que montado em tempo recorde, ainda assim próximo até do estilo televisivo de House of Cards ou mesmo da mais antiga The West Wing, combinando a eficácia dos planos e os subtis records num cinema verdadeiramente excitante.