O Invicto/Aparajito e O Salão de Música/Jalsaghar são estreias comerciais em Portugal
É um cinema de profunda revolução que importa absolutamente conhecer. Até porque só agora estas duas obras-primas, cada uma delas com mais de seis décadas, têm distribuição no nosso país, a cargo da Leopardo Filmes.
Cada vez mais, ver cinema, bom cinema (em Lisboa, mas não só), passa pela recuperação de património fílmico que acaba por oferecer, na esmagadora maioria dos casos, uma experiência de desfrute bastante superior à oferta comercial em sala de cinema. E, nesse caso, a sala do Nimas tem cumprido um papel absolutamente notável por uma programação constante que pensa o cinema como um objecto de arte, devolvendo-nos, em pequenos ciclos, retrospectivas de autores congraçados e em cópias com novos restauros digitais imaculados. Como sucedeu, por exemplo, com o recentíssimo (e imperdível!) conjunto de filme de John Cassavetes (ainda em exibição alternada), já depois de Éric Rohmer, Joseph Losey, Wong Kar Wai, Louis Buñuel, Jean Renoir, etc. Eis que chega a vez da força do cinema de Satyajit Ray, antes de Rainer Werner Fassbinder, previsto para o mês de Outubro.
A propósito de Jean Renoir, curiosa é até a sua ligação com Satyajit Ray, quando o indiano conheceu o francês quando este veio para Calcutá, em 1949, para filmar o belíssimo The River/O Rio Sagrado (1951), ajudando-o na repérage do filme, procurando locais de filmagem nas zonas rurais. E é até nesta atura que relata ao mestre francês o projecto que tinha há muito tempo para o que seria o seu primeiro filme. Precisamente inspirado no romance Pather Panchali, de 1928, sobre o processo de maturação (com elementos semi-autobiográficos) de Apu, o rapaz de Bengali, que haveria de motivar uma trilogia. A estreia do filme Pather Panchali/O Lamento da Vereda (1955), haveria de o levar a Cannes (onde venceria o prémio do Melhor Documento Humano). Isto em tempos de força do neo-realismo italiano, uma influência forte na concepção do cinema que Satyajit desejava fazer, em particular pelo uso de actores amadores. Lentamente, mas de forma consistente, o filme ganhou projecção internacional e a continuação da saga de Apu.
O resultado é Aparajito (1956), o filme que afirma o eterno efeito de transição de Apu entre a juventude e a descoberta do conhecimento, bem como a relação mais complexa com a mãe que o ama. E, por aqui, se desvincula Ray da ‘herança’ do cinema povero italiano da época. Talvez a imagem mais irónica seja mesmo aquele comboio que atravessa a região de Benares, junto ao rio sagrado, o Ganges, para o ‘recomeço’ da vida da família de Apu. Uma imagem mítica que Wes Anderson usaria no seu filme de homenagem ao cineasta indiano, em The Darjeeling Limited (2007), incluindo até vários trechos de música composta por Satyajit Ray.
Será precisamente essa abertura ao mundo que acabará por comprometer a ligação de Apu com a mãe, bem como o afastamento das tradições locais, nomeadamente a ruptura com a continuação do sacerdócio e legado do pai, em detrimento do conhecimento e da descoberta da ciência ao estudar em Calcultá. O resultado é um filme deslumbrante que venceria o Leão de Ouro, em Veneza, além do prémio FIPRESCI. Ganha ainda pelo encantamento da música de Ravi Shankar, assinalando essa possibilidade de um cinema novo na Índia, como alternativa aos musicais e à tentativa de criar blockbusters. Apesar do sucesso internacional, o filme não seria um sucesso comercial.
Talvez por isso, em O Salão de Música, o projecto que realiza entre a pausa para o terceiro filme da trilogia (O Mundo de Apu, de 1959), Satyajit tenha procurado esse sucesso pela inspiração temas clássicos locais, aqui na adaptação de uma popular short story, bem como na música, a que associa elementos cinematográficos notáveis e que irão fazer a diferença. No caso, colocando a cena num palácio em Nimita, surpreendentemente servira de inspiração para personagem do conto, e usando a música de Ustad Vilayat Khan (1928-2004), um exímio intérprete de sitar clássica.
O que importará referir é a forma como Satyajit Ray combina o fim de uma época, dando um novo passo em frente a um cinema cada vez mais maduro. Espelha-se aqui a decadência do aristocrata, o prietário ou ‘zaminder’, Biswambhar Roy, que não abdica da opulência, mesmo empenhando o resto das jóias da família, para impressionar o ‘novo rico’ com a festa mais grandiosa. Tudo isto envolto no desnorte de um turbilhão musical, admiravelmente assumido pela música e a dança tradicionais
Magnífica a forma como procura traduzir o êxtase sensorial através da música, em que o desespero do aristocrata pela morte do herdeiro se combina com a vaidade de manter a opulência diante do convidado burguês. É justamente nesse mise en abyme, conferido pelo uso da metáfora do reflexo do espelho do salão de dança, diante dos quadros dos antepassados que reflectem a sua descendência inexistente, bem como do candeeiro que se quer manter cristalino, que se opera a transcendência pelo ritmo encantatório da música e a dança a culminar de êxtase final. Trata-se de uma tremenda experiência de cinema que bem poderia ter sido incluída no recente ciclo ‘O Outro Lado do Espelho’ que a Cinemateca Portuguesa programou o mês passado. E que bem ficaria, por exemplo, ao lado de A Dama de Xangai, de Welles, O Criado, de Losey, ou até Taxi Driver, de Scorsese.