Ok, este é um filme sobre um assalto a um banco, mas cujo desenrolar demora três horas. Ultrapassado que está o elemento temporal – sobretudo numa altura em que a nossa atenção é medida em escassos segundos – todo o resto é ganho. Antes dizer que Os Delinquentes vale o seu tempo em ouro. Vejamos, temos 190 minutos de cinema rico em narrativa e simplicidade, sem descurar um próprio auscultar do meio cinematográfico –questiona-se a certa altura se “o cinema está morto”? Mas para logo refutar a premissa.
Em Os Delinquentes, o argentino Rodrigo Moreno, pertencente à ‘nova vaga do cinema argentino, propõe-nos um desafio sob a forma de uma longa comédia ácida. Desde logo, assumindo o tempo, como matéria de gozo, em que até cabe uma conceção de vida alternativa ao cinzentismo de tantas propostas. Sobretudo numa altura em que o tempo é despudoradamente esbanjado, com a concentração desmesurada em pequenos ecrãs espelhados. E até mesmo quando, em muitos casos, está em causa algo a que muitos chamam ‘cinema’. E há também referências. Muitas. Bresson, uma delas, pois inevitável pensar na gestualidade de Pickpocket/O Carteirista (1959), mas paira no filme sobretudo a influência e a calma de L’Argeant/O Dinheiro (1983).
Mas este será também um jogo de opostos. De duplos. Mas já lá vamos. O filme teve a sua apresentação mundial em Cannes (Un Certain Regard), passando depois na prestigiada secção Horizontes do festival de San Sebastian, e já depois de presença a concurso no último LEFFEST, onde venceu o Grande Prémio do Júri João Bénard da Costa. Dito isto, há um plot com uma trama que é preciso partilhar e explicitar. Mesmo que com alguns spoilers. Talvez.
Algures numa agência bancária discreta de Buenos Aires vive-se a modorra de quem ali trabalhou uma vida inteira. Num eventual momento de ócio, o funcionário Morán (Daniel Elías) ousa engendrar um plano realista, não sem sopesar os prós e contras do seu futuro. A ideia é singela. E ousada. Desviar uma soma avultada de dinheiro. No entanto, para o plano correr bem, terá de assumir todos os riscos. Ou seja, deixar-se prender e recuperar a massa depois de cumprir a pena de prisão. Em causa estão 650 mil dólares que Morán se propõe repartir com o colega Román (Esteban Bigliardi). Basta que guarde o saco com a massa durante 3 anos e meio, o tempo que Morán estaria preso. Na verdade, seis anos, embora com libertação 3 anos e meio depois, por boa conduta.
As contas são simples, “recebes todos os dias o salário sem ter de trabalhar.” E fazem-se assim: “3 anos e meio na prisão ou 25 anos no banco” até à reforma? Cobra-se assim todos os meses o salário, mas sem ter de trabalhar. Quem nunca sonhou assim que levante a mão! Aliás, Morán nem sequer é ganancioso: “quero uma vida modesta, mas não quero trabalhar mais.” Até porque o seguro haveria de cobrir esse desfalque.
Aliás, confirmado pelo gerente que dirá “isto nunca aconteceu”, para que os clientes não perdessem a confiança. Ainda que todos os funcionários sejam potenciais culpados, como se defende num inquérito interno dirigido por Laura Ortega, nada menos que a Laura de Trenque Lauquen, de Laura Citarella, um dos grandes filmes do ano passado, também ele muito generoso na sua duração. Aliás, dividido em dois filmes, somando perto de 4 horas. Na verdade, há elementos comuns entre Moreno e Citarella, dir-se-ia até, elementos de uma certa firma argentina de tricotar a narrativa com o tempo.
Moreno divide o filme (e o tempo) em dois blocos diferentes. Na verdade, como se criasse os dois lados da moeda (ou das notas de dólar), mas também o dos dois ‘delinquentes’, Morán e Román, cujos nomes parecem desenhados como um anagrama. Talvez até um jogo de palavras com o próprio Rodrigo Moreno?! Aliás, por mais de uma vez, é-nos mostrado um ecrã dividido com as ‘prisões’ de Morán e Román. Aparecerão ainda duas manas, o elemento feminino do filme, uma Norma (Margarita Molfino) e outra Morna (Cecilia Rainero), por quem flui também o lado masculino do filme. E até um ator que interpreta duas personagens (Germán De Silva, o protagonista do brilhante Las Acacias e de grande parte do cinema argentino deste século): como o gerente do banco e o ‘capo’ da prisão que submete Morán aos ditames de ambas ‘prisões’. Talvez o limite possa até ser conferido por um próprio cineasta que se reconhece mais como videasta, embora diga que faz filmes em vez de vídeos.
Qual será então a mensagem (eventualmente dupla) de Rodrigo Moreno para nós? Ele que se diverte (e nos diverte) com o tempo e aquilo que se pode fazer com ele. Talvez como os jardins que o cineasta (ou videasta) filme: ou simétricos, geométricos, meticulosos, controlados, ou austeros como os japoneses, embora contemplando o valor dado às pedras, à representação das montanhas. É talvez por aqui, neste filme com várias camadas de lastro, e de belas soluções de mise en scène, uso de espelhos e superfícies que possamos começar a pensar na ‘morte’ ou na ‘vida’ do cinema. Porque como se diz no filme, a palava ‘mistério’ não explica nada. Fica-nos apenas o tom macio das palavras ou a escutar o chamamento das cigarras nos dias de muito calor. Por isso mesmo, Os Delinquentes é um filme precioso em que nos apetece ficar longamente à conversa depois de o ver.