Telmo Churro guia-nos no caminho para a sua ‘Índia’

Dez anos depois da sua primeira (e única!) curta, Telmo Churro leva-nos de viagem à procura de uma Lisboa pouco secreta.

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Há uma inegável coerência – e uma certa intimidade até – no trabalho de Telmo Churro. Apesar de ser já longa a sua ligação ao cinema, também é verdade que só assinou dois filmes enquanto realizador: a curta Rei Inútil, em 2013, sobre os dramas pessoais de um adolescente; algo que, de certa forma, se prolonga, ainda que partilhados por diferentes gerações, precisamente uma década mais tarde, na deriva desta sua Índia, onde Telmo descobriu um caminho feliz para a sua primeira longa-metragem. Ou seja ‘Thumbs up!’, como diz, no filme, o jovem Manuel, replicando. Portanto, ‘está aprovado!’ 

Será pouco uma década para uma curta e uma longa? Sim, só que no caso de Churro, esse tempo foi bem empregue em diversas parcerias com alguns dos melhores cineastas ‘tugas’ do nosso século XXI – seja como argumentista, seja como editor. 

Claro que notórias são as colaborações com Miguel Gomes (desde Aquele Querido Mês de Agosto, prolongado por Tabu e por As Mil e Uma Noites, bem como a assinatura no próximo Grand Tour), mas igualmente também com Manuel Mozos (Ramiro), ou ainda Salomé Lamas, Maya Kosa, João Vladimiro, entre os outros nomes grandes que a sua filmografia confirma. Um trabalho sério e personalizado, sublinhado até pela particularidade, algo em contracorrente, de optar pela película, em vez do digital.

Talvez esta contextualização ajude a perceber a coerência com que o lisboeta de 46 anos nos revela o caminho para a esta sua Índia, um filme necessariamente de baixo orçamento (uma vez mais assegurado pela produção de O Som e a Fúria), onde parece evidente aquilo que o move. Desde logo, na proximidade com a personagem do protagonista, o guia Tiago, numa muito adequada prestação de Pedro Inês, ator bem calhado para este papel e devidamente recuperado do cinema de João Botelho. Ele que incorpora um historiador falhado no seu rumo, embora com a ressalva de que seja ‘a sua História’ que mereça ser contada (ou até vivida!). E ‘à sua maneira’. Qual solitário cavaleiro andante, movido pela gesta e a fleuma do poeta Antero de Quental, imbuído pelo idealismo socialista de Raul Proença, embora com a determinação aventureira de um Afonso de Albuquerque, talvez até figurando numa narrativa crítica de Fernão Lopes.

Percebe-se a herança de Raúl, o pai marinheiro de carreira (José Manuel Mendes), mas que não perdeu as graças do mar, e até a descendência errante e sonhadora, própria da adolescência, do filho Manuel (João Carvalho). Será este trio de típicos ‘portugas’ errantes, movidos pelo desejo de aventura, ao mesmo tempo a suspirar pelo desejo das suas amadas, de alguma forma desaparecidas. A motivar esta ‘viagem’ está a procura de segredos e descobertas desejados pela turista brasileira Karen (Denise Fraga), natural do interior rural do Brasil, igualmente em perda do marido, com quem apenas comunica por via de cartas e solilóquios. 

É conseguida a ideia do embarque numa busca mitológica ao longo da capital, sentindo o cruzar de vozes, transmitidas à distância, dos corpos separados ou apenas ligados pela palavra, algures procurando descobrir um caminho que revele eventuais segredos de uma capital demasiado devassada pela vaga turística. Nesse sentido, Lisboa será a Índia de Churro, apesar da sentença de Tiago: “não há mais nada para descobrir em Lisboa”. A não ser, talvez, inventando segredos.

Ou uma coerência fundada naqueles que nos precederam, pois isto está cada vez mais dado a uma cristalização de formas. Daí uma certa filiação cinematográfica devidamente encaixada no cinema dos dois Joãos; no Botelho, como se imagina, mas também no César Monteiro, pois claro; talvez até mais próximo das marcas desse tal realismo urbano que lhe fica tão bem. isto sem abdicar do apelo histórico de um certo Oliveira.

Mesmo que isso não impeça o filme de incorrer em algum peso, que rima com o incómodo do nosso guia, por vezes não aliviando um certo peso na bagagem que mesmo as viagens mais atraentes podem produzir.