LEFFEST faz um poker de grande cinema

Foi uma maratona cinematográfica entre propostas irrecusáveis de Jacques Rivette e Jean-Luc Godard, além de um diálogo imperdível entre Pedro Costa e Victor Erice.

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L'amour fou (1969)

Feitas as contas, foram mais 10 horas de cinema interrupto, na sala no Nimas. A programação do LEFFEST a isso nos obrigou. Há dias assim, em que a atenção apenas se sacrifica por uma sandocha a correr ou um chocolate e um café retirado com moedas da máquina do cinema. 

Confesso que, até a semana passada, não me podia gabar de ter visto os 252 minutos L’Amour Foude Jacques Rivette, de 1969, devidamente apresentado numa cópia recuperada digitalmente após o original ter ficado danificado num incêndio. 

Seguramente, incontornável na carreira de um dos mais criativos cineastas da nouvelle vague, aqui num período de rutura com as convenções optando claramente pelo experimentalismo, filmando a preto e branco e usando o suporte de 35 e 16mm. Entrega-se aqui Rivette à improvisação no seio da construção do processo criativo, ao mesmo tempo que assiste à destruição de um casal. Uma ação que decorre ao longo das três semanas de preparação de uma peça de teatro, no caso, a adaptação em verso alexandrino que Racine faz de Andrómaca, uma parte da Eneida de Virgílio -, devidamente acompanhada por uma equipa que documenta os ensaios, filmada por André S. Labarthe, com larga experiência em documentários desse tipo. É nesse contexto que ocorre ainda desintegração pessoal entre o encenador (Jean-Pierre Kalfon) e a sua companheira e atriz na peça (Bulle Ogier).

Godard por Godard (2023)

Filme tremendo, em que se sente um cineasta ao mesmo tempo fascinado pelo teatro e movido por um desejo de avant garde, embora adaptando um dos textos mais clássicos do teatro francês. Ao mesmo tempo, um gesto de cinema situado no seu tempo, ou seja, logo após o Maio de 68, a demissão de Henri Langlois do seu cargo na Cinemateca de Paris e a interrupção do festival de Cannes. Um dado particular, esclarecido pelo comentário de Frédéric Bonnaud, é que o filme foi montado por Jean Eustache, embora num longo diálogo turbulento com Rivette.

Corta! E daqui saltamos para Godard par Godard, um pequeno documento de uma hora constituído por imagens de arquivo de JLG, em inúmeras entrevistas dadas a canais de televisão ao longo da sua carreira (muitas delas disponíveis online). Este um filme que serve de aperitivo ao conhecido O Livro de Imagem, de 2018 (já exibido nas salas e editado em formato de cinema em casa), a sua derradeira longa metragem, devidamente introduzida por Fabrice Agragno, o mais próximo colaborador e montador da última parte da carreira de JLG. 

Além deste filme, o longo programa incluía ainda a sua curta metragem póstuma, Film annonce du film qui n’existera jamais: “Drôles de Guèrres”apresentado em conjunto com a nova curta de Pedro CostaAs Filhas do Fogo, bem como a apresentação do livro Os Quartos do Cineasta, de Jacques Rancière, pela programadora da Cinemateca Maria João Madeira, que também traduz o livro. A sessão foi até iniciada com a curta de Jean-Marie Straub, datada de 1972, Introduction à la ‘Musique d’accompagnement pour une scène de film’ d’Arnold Schoenberg.

LEFFEST: Paulo Branco, Victor Erice e Pedro Costa (foto Paulo Portugal)

Da curta de Costa há que dizer que se trata de um profundo e tocante poema musical ancorado na dor e no passado de cabo Verde, interpretado por um trio constituído por Elizabeth PinardAlice Costa e Karina Gomes. Talvez algo que venha a originar um trabalho mais vasto do cineasta no domínio da música, mesmo que o seu cinema não perca o lado assombrado e maravilhoso que vemos nesta curta.

A longuíssima sessão acabou no tom coloquial conferido pela saborosa conversa entre o espanhol Victor Erice (já depois da exibição no festival do seu filme Fechar os Olhos, que viria a vence o grande prémio do LEFFEST) e o cineasta português Pedro Costa

Acabou por ser uma curiosa sessão em que se reivindicou o poder do ‘ato de resistência’ como motor do cinema, de resto, um conselho endereçado aos criadores mais jovens, bem como o peso de Manoel de Oliveira no cinema de ambos e do mundo. Convenhamos que nada disto é pouco.