Nunca sabemos o que esperar verdadeiramente de um documentário de Marc Cousins, o prolífico documentarista e cinéfilo punk, natural de Belfast. Ainda que diante do insuspeito O Meu Nome é Alfred Hitchcock, o seu mais recente trabalho – em estreia esta semana, pela Zero em Comportamento -, não seria difícil imaginar o desfolhar de uma narrativa sobre a capacidade do mestre do suspense em colocar-nos dentro do seu próprio cinema. E talvez até da forma mais íntima. Isto já depois do recente Marcha Sobre Roma, sobre a ascensão do fascismo em Itália.
Seja com for, o título e essa mera suposição, não pareciam suficientes para adiantar um impulso acrescido ou adensar algum mistério em redor dos seus filmes sobejamente conhecidos. Talvez então, algo na linha de A História do Cinema – Uma Odisseia. Ou, se calhar até, alguma descoberta na linha de Os Olhos de Orson Welles? Pois bem, nem uma coisa, nem outra.
Este é, na verdade, um filme sobre a ‘voz’. Podia ser a voz interrogante e inquisitiva de Cousins, que conhecemos tão bem, ou então a voz de Hitchcok, ainda mais icónica. Pois é por aí que vamos, já que este é, como vem creditado, um filme ‘escrito e narrado por Alfred Hitchcock’. E, para que se saiba, a voz de Cousins escuta-se apenas um par de vezes e apenas em não mais que dois ou três vocábulos.
Conseguem ver-me nas árvores? É assim que tudo começa. O plano é atual, deste século, tal como a voz é, inconfundivelmente, a de Hitch. No entanto, soa como se viesse do além, sobretudo quando comenta a massiva escultura da sua cabeça, instalada no bairro de Hoxton, em Londres, assinada por Antony Donaldson, em 2003. Ok, pára tudo!
Depressa percebemos que é esse o ‘gimmick’ (ou a partida) do filme, pois é a ‘sua’ (dele Hitch) que acompanha todo este filme ensaio, de quase duas horas. Talvez esta duração seja até algo impositiva, forçando-nos a superar essa ‘encarnação’ do mestre do suspense, aqui representada com brio na equiparação irrepreensívei da sua voz à de Alistair McGowan, a estrela britânica da imitação. Contudo, é também aí que emerge o talento de Cousins ao tricotar esta narrativa feita de várias dezenas de filmes, afeiçoando-os ao putativo discurso do seu autor vindo do além, revelando-nos os seus truques, a sua magia. Até porque, aqui e ali, o documento refere-se ao nosso presente, onde tudo parece emanar de um gadget manual, conferindo-lhe, de repente, uma inusitada dimensão.
Dividido em seis partes, comentando a dimensão do escapismo (‘fuga’), até aos ângulos precipitados (‘altura’), esta gramática fílmica e emotiva leva-nos irremediavelmente à intimidade dos seus filmes – assim eles estejam devidamente na nossa memória, pois serão os mais versados na ‘gramática’ hitchcockeana os principais visados pelo filme -, passando por uma análise da dimensão da ‘solidão’, do ‘tempo’, da ‘concretização do amor’. É aí que a genialidade de Cousins se funde com a do realizador britânico ao ousar assumir a visão insinuante ‘de deus’, ‘sendo’ Hitchcock. Algo que faz de uma forma ao mesmo tempo poética e detalhada, tornando difícil abandonar este interminável carrossel entrelaçado por uma das mais fascinantes filmografias de que há memória.
Lá está, será este um concentrado da oralidade Hitchcock que nos faz curvar diante do talento tonal de Mr. McGowan? Talvez. Por isso, o único reparo digno de nota seja mesmo a duração da experiência, forçando até algumas repetições. Talvez até funcionasse melhor num formato mais compacto. Ainda assim, incontornavelmente fascinante. E que nos permitiu até concluir o texto sem a necessidade de citar qualquer filme, algo que se tornaria enfadonho, desde logo pela seleção de cenas. O melhor será mesmo ver o filme até ao fim. E responder à sua piscadela de olho.