Terça-feira, Novembro 5, 2024
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Porto/Post/Doc: cinema de real qualidade em conflito

Ao saltitar entre sessões e secções no programa do Porto/Post/Doc vai-se formando a trama que tece uma das linhas de força mais fortes da edição deste ano fortemente ancorada no real. Algo que passa por um momento de revolução e de conflito. Um pouco como a nossa realidade, de tão inacreditável que passa a rivalizar com a ficção.

Vale a pena, em particular, destacar as sessões desta quarta-feira que deixaram marca: Between Revolutions, do romeno Vlad Petri, exibido na competição internacional, e ainda a recuperação da trilogia de Beirute, assinada por Jocelyne Saab, na seção Onde Andam os Nossos Contadores de Histórias. 

O filme romeno parte da suposta correspondência trocada entre ex-colegas, uma romena outra iraniana, ambas estudantes de Medicina, ao abrigo de um intercâmbio entre a Roménia e o Irão. Isto no final dos anos 70, quando várias jovens estudaram em Bucareste, como é ilustrado nos créditos finais onde são exibidas cópias dos cartões de admissão da República Socialista da Roménia. 

Trata-se de um registo perturbante, totalmente constituído por imagens de arquivo, e surpreedente pela forma como uma correspondência mantida pelas amigas ao longo de dez anos capta as transformações políticas ocorridas no Irão, com as manifestações nas ruas e a subsequente deposição do Xá Reza Pahlavi, até à implantação da revolução islâmica, em 1979; enquanto que do outro lado, na Roménia, a pressão crescente do regime de Ceausescu acabaria por motivar a revolução anticomunista, ocorrida em 1989, e culminar com a execução do ditador no dia de Natal desse ano. 

O que temos é sobretudo um trabalho notável de narrativa e edição em que a deliberada intenção de ativismo político-social Petri se harmoniza entre estas duas revoluções, fundindo de uma forma harmoniosa o documentário com a ficção. Talvez até a ligar-se a uma ‘nova revolução’ que possa estar a desenhar-se no Irão. 

Aliás, esta foi uma solução alternativa, e melhorada, entenda-se, pois a intenção inicial de Petri era abordar o tema e os eventos de uma forma mais canónica. Algo que se compreende, até por uma mais emotiva relação com o seu público, em que a componente poética das cartas entre as duas mulheres acaba por se evidenciar. Desde logo, alguma liberdade na sua recriação, conseguida em colaboração com hisotriadores bem como a sua associação com os poemas da iraniana Forough Farrokhzad, um dos grandes nomes da ‘nova vaga iraniana’, tal como também a inspiração das palavras da poetisa e ativista romena Nina Cassian.

Trilogia de Beirute – ‘o povo libanês está com o povo palestino’

Passemos a Jocelyne Saab e à urgência documental da trilogia de Beirute. Ela é composta por Beirut, Never Again(1976), A Letter From Beirut (1978), e Beirut My City (1982), por sinal, exibida já no DocLisboa, edição de 2019, justamente no ano da morte da ativista Saab.

Beyrouth, Jamais Plus (1976).

Por todos os motivos, essa foi uma sessão marcante – desde logo, sublinhada pela proximidade que os seus filmes nos aproximam das reportagens diárias sobre a tragédia de Gaza; mas também pela intervenção de Maria do Carmo Piçarra na moderação da palestra A casa e negra – carta a Jocelyne Saab, com Ana Naomi de Sousa e Ricardo Alexandre.

Por aqui até se traça um novo encontro com Forough Farrokhzad, inspirado na sua curta majestosa The House is Black, algo que a autora e investigadora descreve como um cinema “lírico e comprometido”, em que a poesia se intromete nos seus planos, “desvelando o horror, e a intimidade e o pudor no trato com os exilados, deslocados e “sem voz””.

Na verdade, uma associação pertinente, sendo difícil de recusar a proximidade de certas imagens pungentes do filme da libanesa com o assombroso (e único!) filme da poetisa iraniana. Ela, Jocelyne, libanesa, cristã, árabe, jornalista, cineasta. Pioneira do cinema do seu país, testemunha do conflito israelo-árabe e autora de dezenas de documentários e reportagens sobre as questões candentes do Médio Oriente. 

Algures entre a procura da poesia no real tão próxima a Chris Marker, embora em jeito de caderno de apontamentos ou diário confessional, por certo, não estranho ao trabalho identitário de Jonas Mekas. Contudo, subsiste um espaço que é mesmo seu, seja quando visita aquela que foi a sua casa de família, cujas memórias alcançam um século e meio; seja quando viaja nos transportes públicos e escuta os gestos dos que se recusam a pagar o bilhete por não terem dinheiro, ou quando recupera conversas à mesa com amigos depois recordados como desaparecidos no filme seguinte.

É talvez essa experiência da reportagem televisiva que a move, tal como a necessidade do registo. Em 1976, Beirut Never Again, é a voz do poeta e artista Etel Adnan que se escuta à medida que a câmara avança numa cidade fantasma em que, cada vez mais, as crianças são chamadas a defender o seu território; dois anos depois, em Letter from Beirut, é a cineasta que regressa à sua cidade esventrada, violada, deambulando pelas ruas e transportes públicos, refletindo num momento de tréguas; finalmente, em Beirut My City (1982), Saab visita (com o seu colaborador, dramaturgo e realizador Roger Assaf) a casa de família após a invasão israelita nesse ano.

Porém, tudo desaba quando pára diante das crianças pré-adolescentes, de arma em punho, olhando com confiança para a câmara, denotando uma maturidade feita de algo que supomos impensável. Ela que encontrará até uma réstia de esperança, ao fixar a sua câmara num idoso que, no meio de um ataque aéreo israelita, atravessa a rua, com o seu regador, e rega as plantas numa praça, alegando que “elas não têm culpa”. 

A realidade é que “estar vivo”, como se diz no filme, “pode ser um presente inesperado”.

Beirut My City
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