Ao saltitar entre sessões e secções no programa do Porto/Post/Doc vai-se formando a trama que tece uma das linhas de força mais fortes da edição deste ano fortemente ancorada no real. Algo que passa por um momento de revolução e de conflito. Um pouco como a nossa realidade, de tão inacreditável que passa a rivalizar com a ficção.
Vale a pena, em particular, destacar as sessões desta quarta-feira que deixaram marca: Between Revolutions, do romeno Vlad Petri, exibido na competição internacional, e ainda a recuperação da trilogia de Beirute, assinada por Jocelyne Saab, na seção Onde Andam os Nossos Contadores de Histórias.
O filme romeno parte da suposta correspondência trocada entre ex-colegas, uma romena outra iraniana, ambas estudantes de Medicina, ao abrigo de um intercâmbio entre a Roménia e o Irão. Isto no final dos anos 70, quando várias jovens estudaram em Bucareste, como é ilustrado nos créditos finais onde são exibidas cópias dos cartões de admissão da República Socialista da Roménia.
Trata-se de um registo perturbante, totalmente constituído por imagens de arquivo, e surpreedente pela forma como uma correspondência mantida pelas amigas ao longo de dez anos capta as transformações políticas ocorridas no Irão, com as manifestações nas ruas e a subsequente deposição do Xá Reza Pahlavi, até à implantação da revolução islâmica, em 1979; enquanto que do outro lado, na Roménia, a pressão crescente do regime de Ceausescu acabaria por motivar a revolução anticomunista, ocorrida em 1989, e culminar com a execução do ditador no dia de Natal desse ano.
O que temos é sobretudo um trabalho notável de narrativa e edição em que a deliberada intenção de ativismo político-social Petri se harmoniza entre estas duas revoluções, fundindo de uma forma harmoniosa o documentário com a ficção. Talvez até a ligar-se a uma ‘nova revolução’ que possa estar a desenhar-se no Irão.
Aliás, esta foi uma solução alternativa, e melhorada, entenda-se, pois a intenção inicial de Petri era abordar o tema e os eventos de uma forma mais canónica. Algo que se compreende, até por uma mais emotiva relação com o seu público, em que a componente poética das cartas entre as duas mulheres acaba por se evidenciar. Desde logo, alguma liberdade na sua recriação, conseguida em colaboração com hisotriadores bem como a sua associação com os poemas da iraniana Forough Farrokhzad, um dos grandes nomes da ‘nova vaga iraniana’, tal como também a inspiração das palavras da poetisa e ativista romena Nina Cassian.
Trilogia de Beirute – ‘o povo libanês está com o povo palestino’
Passemos a Jocelyne Saab e à urgência documental da trilogia de Beirute. Ela é composta por Beirut, Never Again(1976), A Letter From Beirut (1978), e Beirut My City (1982), por sinal, exibida já no DocLisboa, edição de 2019, justamente no ano da morte da ativista Saab.
Por todos os motivos, essa foi uma sessão marcante – desde logo, sublinhada pela proximidade que os seus filmes nos aproximam das reportagens diárias sobre a tragédia de Gaza; mas também pela intervenção de Maria do Carmo Piçarra na moderação da palestra A casa e negra – carta a Jocelyne Saab, com Ana Naomi de Sousa e Ricardo Alexandre.
Por aqui até se traça um novo encontro com Forough Farrokhzad, inspirado na sua curta majestosa The House is Black, algo que a autora e investigadora descreve como um cinema “lírico e comprometido”, em que a poesia se intromete nos seus planos, “desvelando o horror, e a intimidade e o pudor no trato com os exilados, deslocados e “sem voz””.
Na verdade, uma associação pertinente, sendo difícil de recusar a proximidade de certas imagens pungentes do filme da libanesa com o assombroso (e único!) filme da poetisa iraniana. Ela, Jocelyne, libanesa, cristã, árabe, jornalista, cineasta. Pioneira do cinema do seu país, testemunha do conflito israelo-árabe e autora de dezenas de documentários e reportagens sobre as questões candentes do Médio Oriente.
Algures entre a procura da poesia no real tão próxima a Chris Marker, embora em jeito de caderno de apontamentos ou diário confessional, por certo, não estranho ao trabalho identitário de Jonas Mekas. Contudo, subsiste um espaço que é mesmo seu, seja quando visita aquela que foi a sua casa de família, cujas memórias alcançam um século e meio; seja quando viaja nos transportes públicos e escuta os gestos dos que se recusam a pagar o bilhete por não terem dinheiro, ou quando recupera conversas à mesa com amigos depois recordados como desaparecidos no filme seguinte.
É talvez essa experiência da reportagem televisiva que a move, tal como a necessidade do registo. Em 1976, Beirut Never Again, é a voz do poeta e artista Etel Adnan que se escuta à medida que a câmara avança numa cidade fantasma em que, cada vez mais, as crianças são chamadas a defender o seu território; dois anos depois, em Letter from Beirut, é a cineasta que regressa à sua cidade esventrada, violada, deambulando pelas ruas e transportes públicos, refletindo num momento de tréguas; finalmente, em Beirut My City (1982), Saab visita (com o seu colaborador, dramaturgo e realizador Roger Assaf) a casa de família após a invasão israelita nesse ano.
Porém, tudo desaba quando pára diante das crianças pré-adolescentes, de arma em punho, olhando com confiança para a câmara, denotando uma maturidade feita de algo que supomos impensável. Ela que encontrará até uma réstia de esperança, ao fixar a sua câmara num idoso que, no meio de um ataque aéreo israelita, atravessa a rua, com o seu regador, e rega as plantas numa praça, alegando que “elas não têm culpa”.
A realidade é que “estar vivo”, como se diz no filme, “pode ser um presente inesperado”.