Encontro com realizador russo do momento, na véspera dos Prémios do Cinema Europeu, em Riga. Oportunidade para esclarecer as dúvidas de conteúdo político que se nos colocam ao vermos Leviatã, mas também aprofundar o significado do que é efetivamente a alma russa. Isto numa altura em que Leviatã ainda não estreara na imensa Rússia. Uma conversa longa, bastante refletida, sempre com a ajuda de intérprete. Apesar das longas respostas, pareceu-nos que as respostas eram mais breves. Seja como for, não nos parece que tenhamos ficado ‘lost in translation’…
Ficou surpreendido com a distinção que o filme teve nos Globos de Ouro e também com a escolha russa pela a nomeação aos Óscares?
Não. Percebo que é uma lotaria e que a lista mínima tinha excelentes filmes. Por isso é sempre uma boa surpresa. Quanto à escolha russa é uma surpresa ainda maior. Algo que não esperava. Surpreendeu-me a decisão, mas não só a decisão. Sobretudo pelo produtor que fez com que todos os membros da comissão vissem o filme. É portanto um feito dele.
Um outro aspeto que contribuiu foi o facto de ter existido um conflito em 2011, em que o meu filme foi nomeado juntamente com o de Nikita Mikhalkov, que por acaso é também o Presidente da Comissão. Esse conflito foi tão grande que se espalhou fora da Rússia. O resultado foi que a Comissão recebeu novos membros e pessoas mais independentes. Digamos que esse efeito de nepotismo foi eliminado e tornou-se mais independente e permitiu esta escolha.
No entanto, tenho de mencionar ainda um comentário feito pelo responsável pela comissão do Óscar russo, Vladimir Menshov, que disse uma semana depois do anúncio que a comissão deveria ser revista, pois não tinha ficado satisfeito com o resultado deste ano. É justo que os jovens realizadores tenham os mesmos direitos que todos e que os mais velhos desejem manter a sua hierarquia e a elaboração das leis.
Mas qual foi a reação do público a esta escolha para o Óscar? E o que diz o governo? Apoia o filme?
É o universo russo, algo muito específico. Raramente, os representantes do governo comentam estas coisas. Dois dias antes do filme ser exibido em Cannes, o ministro da cultura viu o filme e disse “que era talentoso, mas eu não gosto”. Foi esse o único comentário público que ouvi. É assim o universo russo, ficam em silêncio e abstêm-se dos seus comentários.
Relativamente aos seus filmes anteriores, qual foi a reação do público?
A reação do público foi mais do que positiva. O próprio Vladimir Putin fez um comentário público sobre o meu filme anterior, Elena. Questionando-se porque existiam tão poucos filmes como Elena e outros. Mencionou também O Regresso (filme que realizou em 2003), logo a seguir à sua passagem em Veneza (onde ganhou o Urso de Ouro). A conversa estava integrada no tema do cinema na Rússia.
No entanto, o filme é bastante político e Putin parece ser mesmo o elefante no quarto. O que acha que o Putin fez bem na Rússia nestes últimos dois, três anos?
A Ucrânia… (risos) Devo dizer que esperava todo o tipo de perguntas, mas não essa pergunta em concreto. Por isso, deve dar-me algum tempo para responder… Avancemos e prometo responder-lhe.
Que comentários tem recebido sobre o filme?
Acho que sobrestimam o papel das autoridades na regulação destes aspetos, porque na verdade não dizem nada. Podem ver ou não ver, mas raramente comentam. Para mim é mais importante saber a opinião do público. No entanto, percebo que o público está na sua maioria viciado na televisão. E as pessoas que vão ao cinema têm entre 14 e 24 anos. Por isso acho que as autoridades não irão manifestar-se. No entanto, tenho curiosidade para saber a opinião do público depois da estreia do filme.
Só me recordo de dois casos nos últimos anos em que existiu censura das autoridades no processo cultural. Foi no filme Russia 88, no festival de Khanty- Mansiysk, em que Vladislav Surkov, o presidente da administração local, fez um telefonema a dizer que se o filme ganhasse o prémio principal haveria problemas. O filme acabaria por receber o segundo prémio. Para além disso, houve ainda alguns problemas de projeção. O segundo caso foi um documentário sobre o grupo Pussy Riot, que iria ser exibido no Gogol Centre. Houve um telefonema que fez o filme desaparecer. Estes são os únicos casos de censura que conheço, embora possam haver mais.
O ministro da cultura disse que todos os filmes talentosos teriam financiamento. Mas, por exemplo, o Doc Fest do Vitali Mansky não terá qualquer fundo do Estado. Isto porque ele não é leal ao mainstream ideológico do governo russo. Eu não sou uma pessoa política e só quando a política se intromete na minha vida é que eu reajo. Por outro lado, a grande maioria do orçamento do filme é estatal.
Muito bem. Porque escolheu este cenário do extremo norte para esta história?
Agora em retrospetiva fico surpreendido como a paisagem não tinha ficado de início no guião. Procurámos a paisagem certa e viajamos para sete cidades diferentes. Já estávamos desesperados e procurámos no Google Maps e encontramos esta localidade. E depois de a termos encontrado percebemos como ampliava a densidade do guião. A ideia do oceano e de estarmos quase no fim do mundo. E era algo que ligava o início com o final do filme. Porque no início temos o elemento em que o homem não é nada; depois temos o mundo dos humanos e finalizamos com o elemento de novo.
Qual o significado religioso o filme?
Falando sobre o Livro de Jó, devo dizer que partimos de uma história verídica que tinha diversos significados. Apenas procuramos um significado mitológico que pudéssemos usar para ilustrar esta luta de uma pessoa que luta contra um grande poder.
Diz que não há muita censura na Rússia. Mas sente que pode trabalhar sem ser perturbado com questões de censura?
Percebo o que quer perguntar, mas para mim como artista o que me interessa é dizer a verdade pela arte, aquilo que vejo. Essa é a nossa missão.
Acha que os russos bebem tanto vodca como se vê no filme?
Como a Rússia é um país do norte e faz muito frio, é natural que se beba mais. Nós bebemos vodca, tal como mais sul se bebe vinho. Nós temos um ditado que diz: “o que é bom para os russos é mortal para os alemães” (risos)…
(risos)… Sente-se tentado a fazer filmes fora da Rússia? Tem recebido ofertas?
Tudo tem a ver com a história. Se a história exigir um país ou uma geografia diferente estão pode fazer sentido. Já recebo algumas, mas daí a dizer que que sinto tentado vai uma grande distância.
Tenho curiosidade sobre as suas influências. Desde logo as óbvias dos mestres russos, presumo. Ou outras que eventualmente tenha? Se é que tem alguma?…
Posso parecer antiquado, mas estou apaixonado pelos anos 60. Por isso, por Antonioni, Bergman, Bresson, Kurosaswa, Iosseliani. É uma grande lista, mas quando vi estas obras primas na cinemateca de Moscovo fiquei mesmo impressionado. Nessa altura queria ser ator e nem sequer sabia quem era o Antonioni. Vi A Aventura e fiquei extasiado. Acho que esse é o nível mais elevado a que se pode chegar.
Porque razão os russos aparecem nos filmes americanos sempre como os vilões? É uma Guerra Fria mal acabada?
É na verdade um estereótipo. É também uma questão de educação. Não é sequer sobre um regime político.
Voltando ao início, acha que Leviatã seria diferente se tivesse um outro Presidente?
Humm… É uma boa pergunta. Mas o filme seria o mesmo. De resto não é sobre o Putin. Um escritor disse que se adormecêssemos durante duzentos anos, saberíamos o que se passava entretanto: beber e roubar. A corrupção faz parte integrante da Rússia. Dito isto, importa referir que a Europa e os Estados Unidos simplificam a ideia da Rússia. Sobretudo nesta altura porque a situação política está a tornar-se muito desagradável. O regime czarista está de volta. Mas a vida na Rússia é muito mais complexa e rica do que aquela que é ilustrada nos filmes americanos.
Voltando a Putin, diria que é muito fácil criticar. Nós estamos a passar tempos muito difíceis. Isso preocupa-me mais do que a reação de uma autoridade sobre um filme meu. Sei quanto é difícil a vida para os cidadãos russos. Para a Europa todos os russos são culpados do que se passa na Rússia. De Putin, os 85% de apoio do povo russo permite perceber que existe uma razão para estarem do lado dele. Eu evito fazer julgamentos na sua política, mas estou mais preocupado do que pareço… Gostava de frisar também que no Ocidente o contexto político do filme é demasiado sublinhado, mas acho que há algo mais para ver para além disso. Gostava de enfatizar mais qual é o destino da minha personagem do que propriamente o contexto político.
(artigo originariamente publicado em c7nema.net)