Toni Erdmann foi um dos filmes mais divertidos e fascinantes exibidos Cannes e um dos mais acarinhados pela crítica internacional. Com toda a justiça recebeu o muito relevante prémio da crítica internacional (FIPRESCI), ficando embora arredado os prémios do júri internacional por uma comprometida e pouco compreensível decisão final. Mas também os prémios valem o que valem.
Na sua terceira longa metragem, a realizadora alemã Maren Ade explora o tema do distanciamento das relações familiares, o cinzentismo formatado provocado pela ambição profissional que esbate o individualismo e uma disponibilidade para de afirmação out off the box. Depois de Todos os Outros, vencedor do Urso de Ouro em Berlim 2009, onde Maren ensaiava os desafios amorosos de um casal em férias na Sardenha, ausculta agora as possibilidades de relacionamento entre pai disponível e filha formatada numa proposta desestabilizadora e fascinante onde não sentem as quase três horas de duração.
Na sua estrutura, está Ines (Sandra Hüller), uma competente e independente executiva solteira, focada na progressão da sua carreira, que recebe a inesperada visita do pai divorciado Winfried (Peter Simonischek) que acaba de enterrrar o velho cão, a sua habitual companhia, muito mais disponível para as coisas simples, para o improviso e até mesmo para uma atitude de role play. Só que a este professor de música do ensino secundário, basta-lhe colocar uma dentadura postiça e uma cabeleira, ou mesmo uma mais do que exótica máscara búlgara, para sair da caixa e bulir com quem está ao seu redor. Seja a fazer-se passar por um embaixador em conversas de ambiente social, um milionário transportado por uma limusine ou um excêntrico capaz de aliviar gases em público. No entanto, com uma confiança suficiente para ninguém se atrever a desconsidera-lo. Já Ines dificilmente concebe um mundo fora do seu ambiente laboral.
Este é um aliciante jogo aquele que se estabelece entre as duas personagens, dois actores experientes, a intensa Sandra Hüller (Urso de Prata em Berlim pela melhor representação feminina, em Requiem, de Han-Christian Schmidt, em 2006) numa curiosa dança com o austríaco veterano Simonischek. O resultado é um fascinante exercício de representação dentro da próprioa representação que ambos devolvem com tremenda eficácia, num dos melhores exemplos do novo cinema alemão.
Pouco convencido da felicidade da sua filha, constantemente interrompida com urgentes telefonemas de trabalho, ainda que elogiada pelos superiores dela, o pai encontra na sua personagem de Toni Erdmann o motor para criar uma zona de desafio e desconforto para a filha. À medida que ele evolui no seu delírio, ainda que sempre gerando uma atitude muito positiva em seu redor, a executiva é testada ao ponto em que só lhe resta entrar no jogo. Mas saberá jogá-lo?
Maren Ade, confessa admiradora do cinema de Miguel Gomes, de resto, produtora de Tabu e As Mil e Uma Noites, já nos convencera da leveza do seu cinema, feito de personagens livres, nos limites de uma saudável anarquia, sempre com o recurso a uma câmara igualmente leve, sem preocupações estéticas. Hüller é tremenda nessa tensão e distante desconforto, num jogo de olhares que permitem essa desconstrução progressiva da personagem.
O clímax do filme ocorrerá em dois momentos, ambos com uma tremenda reação do público em Cannes. Se dissermos que um deles envolve uma interpretação fantástica do tema de Whitney Houston, Greatest Love of All, diante de uma inesperada plateia, não teremos ainda chegado ao zénite que acontecerá numa inesperada situação que acaba por motivar uma improvisada naked party. Toni Erdmann foi cinema desempoeirado e livre, tornando-se o responsável por alguns dos melhores momentos vividos na sala de cinema em Cannes. Uma espécie de coaching relief para descobrir o mais breve possível.