Rachel Weisz revive o trauma de provar em tribunal que o Holocausto existiu. É precisamente nessa procura da verdade que o filme se centra e se encontra escapando assim à banalidade.
Negação recorda o processo judicial de 1996 em que a escritora e historiadora Deborah E. Lipstadt teve de provar a veracidade do Holocausto depois de ter sido processada por David Irving, o reputado historiador negacionista e xenófobo que negava esse genocídio. O filme baseia-se precisamente no livro de Lipstadt Denying the Holocaust: The Growing Assault on Truth and Memory, a partir da adaptação de David Hare, e foi escolhido para abertura da 5ª edição da Judaica – Mostra de Cinema e Cultura, que decorre até ao próximo dia 2 de Abril, em Lisboa, prolongando-se depois por outras cidades (Cascais, Belmonte e Castelo de Vide). O filme estreia esta semana em Portugal.
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A sessão de abertura da Judaica teve ainda a curiosidade de ser antecedida pela curta Com Alguma Paciência, a primeira de László Nemes (vencedora no IndiaLisboa, em 2008), o autor do poderoso e multi premiado O Filho de Saúl, aqui a versar sobre o quotidiano de uma secretária num campo de concentração nazi.
Num curto vídeo selfie captado pelo telemóvel, Deborah Lipstadt agradece o convite para a abertura do festival e subscreve o âmbito mais lato que Negação tem recebido. Desde logo, desde que foi apresentado no festival de Toronto, em setembro passado, e em particular à colagem do antagonista britânico David Irving a ao igualmente polémico e contraditório Donald Trump.
O que não deixa de ser curioso é encontrarmos atrás da câmara Mick Jackson, o realizador do famoso O Guarda-Costas, o tal filme que juntou em 1992 Kevin Costner e Whitney Huston num aceso romance, e que interromperia a sua carreira televisiva para regressar ao grande ecrã com esta trama de barra de tribunal que revive esse processo judicial.
Rachel Weisz acaba por ser uma escolha certa para o papel de Lipstad, ela que tem herança judaica por parte do pai, sendo coadjuvada pelo sempre irrepreensível Tom Wilkinson, no papel do seu diligente advogado de defesa, e ainda com Timothy Spall como David Irving.
Apesar de inevitavelmente preso aos códigos do filme desta natureza, Negação eleva-se acima dos clichés do género para se focar em algo que é óbvio para quase todos, mas que transporta o problema para o foro da verdade jurídica, portanto provada. Ao colocar de lado o trauma – isso está tudo no seu livro, justifica a certa altura a Deborah o solicitador britânico Anthony Julius (Andrew Scott), responsável pela condução da investigação processual – adquirem assim outra relevância as provas periciais que refutam as alegações negacionistas da obra de Irving. Seguramente um filme com a nota de mitigar as irresistíveis ascensões nacionalistas? Talvez, mas sem o resultado que muitos desejavam.
Seja como for, em face da necessidade de defender a verdade acima de tudo, tropeçamos necessariamente no trabalho da judia alemã Hannah Arendt e a sua controversa justificação do conceito “do dever massificado” gerador da “banalidade do Mal” para, de alguma forma, centrar a atuação do “funcionário zeloso” nazi Adolf Eichmmann, um dos principais obreiros do Holocausto. Seguramente, um diálogo comunicante entre dois processos judiciais (e aqui não precisamos sequer de recordar Nuremberga).
Mesmo que esta procura da verdade não seja suficiente para tornar um filme bem intencionado numa obra-prima, ao colocar o acento tónico nessa necessidade desapaixonada de encontrar provas efectivas desses vestígios de genocídio, como que o iliba das frequentes rasteiras que normalmente descambam em filmes de causa, mas sem coração.
É claro que esta causa é imbatível para o povo judaico. Mesmo que não seja um povo totalmente isento de mácula. Quiz o destino que ao tentar entrar no site da Agenda Cultural de Lisboa, na notícia referente à Judaica 2017, para confirmar alguns dados, que percebemos que a página havia sido bloqueada por hackers argelinos que deixaram o seguinte comentário: “Algeria with Palestine unjust or oppressed , we will free palestine”. Hoje, quarta-feira, já estava ‘libertada’. Não deixa de ser paradoxal esse ataque a afirmar a “negação” de direitos ao povo palestino.