Guillermo Del Toro acrescenta mais uma criatura ao seu bestiário cinematográfico sob a forma de uma revisão do mito da Bela e o Monstro, devidamente suportada por uma deslumbrante versão série B. Só que antes de se pensar numa mera revisão de uma certa criatura do lago negro vinda da Amazónia, eis que o mexicano nos espevita a atenção com doses titilantes de masturbação e sexo, bem como um piscar de olho matreiro à música e ao cinema clássico. Isto num período crucial para a América, decorria o ano de 1962, centro de fortes contestações sociais, a meses do assassinado de JFK, numa altura em que a Guerra Fria se virava para as estrelas. Como se esperava, o filme foi recebido com euforia em Veneza e passa, desde já, a envergar o putativo troféu do Leão de Ouro. Pelo menos até outro o resgatar.
Na verdade, The Shape of Water está demasiado próximo do clássico O Monstro da lagoa Negra, de 1954, o tal filme que em tempos foi alvo de uma experiência em 3D caseiro através da televisão, ao levar bem a sério o seu lado de filme Série B, embora nos anos 60, ao desenhar a estrutura do filme devidamente decorada por russos indesejáveis, embora mais adiantados na corrida espacial. E é talvez por aí que Del Toro melhor afirma o seu cinema, o mesmo que já nos deu Cronos (1993), Hellboy (2004), O Labirinto do Fauno (2006) Crimson Peak (2015). Mas é claro que também se adorna com um inevitável, e improvável, contorno romântico que acaba por dominar a sua mensagem.
É isto o que acontece quando Del Toro consegue concretizar um projeto que tem tudo de seu. Neste caso, o guião trabalhado em conjunto com Vanessa Taylor, a partir de uma ideia que Toro engendrou com Daniel Kraus, o auto de Monster Variations, e devidamente decorado por um imaginário visual que apelidaríamos de clássico vintage, não alheia ao imaginário de Fallout, se nos é permitida a piscadela de olho gamer, defendido por cast seguro, onde a inesperada londrina (happy-go-lucky) Sally Hawkins se assume como a bela de serviço metódica, ainda que muda, Elisa que encontrará na viscosa criatura a sua alma gémea e um eventual parceiro que até melhorará a sua atividade sexual masturbatória. Porque sim, como explicará à parceira mulher de limpeza Octavia Spencer, o monstro (com Doug Jones do lado de dentro do fato) escondia algo atrás do seu ventre liso. Talvez um parceiro mais adequado que um Richard Jenkins não totalmente decidido pela sua orientação sexual.
Quando a criatura é “pescada” e trazida para um tanque do departamento americano de defesa dirigido por um ácido e truculento Michael Shannon, a entronizar o típico americano de 2017, destinado a fazer dinheiro a todo o custo e a subjugar o médico de boas intenções (Michael Stuhlbarg). Graças ao tal encontro entre Elisa e o monstro, em redor de um ovo cozido, ergue-se um mundo de fantasia que acaba por combinar elementos de filmes clássicos, entre épicos históricos, musicais do período clássicos dos anos 30 a 50, com a inevitável Carmen Miranda, num bailado musical cuja fantasia supera géneros e se eleva bem para além da nossa imaginação.
O filme começa (como irá acabar) com uma divisão de uma casa totalmente inundada onde pequenos objetos domésticos flutuam num elegante bailado ao som delicodoce de Alexandre Desplat. Será talvez até por esta tentativa de amansar os monstros e torna-los sexys e apaixonados que The Shape of Water se revela com um produto destinado a um público vasto do que os mais fatalistas B movies. À partida, nada contra com esta concepção vistosa, nos seus inevitáveis tons de verde, a alternar em grande medida com o escarlate de Crimson Peak. Ainda que Del Toro mantenha o seu lado mais visceral ao incluir algumas cenas de desenho brutal.
Ganhe ou não o Leão de Ouro, saudamos o regresso do grande Guillermo Del Toro ao cinema que gosta e sabe fazer. E mesmo que inclua algumas cedências a um lado mais feelgood, mantém coeso um cinema que seduz, provoca e deslumbra. Nesse sentido, The Shape of Water cumpre em larga medida no seu crivo de cineasta próximo do belo e do horrível.