Mais de uma década depois da sua aventura nos Estados Unidos, o alemão Robert Schwentke (não deixe de ler a nossa entrevista) regressa à Alemanha para confrontar o seu povo – e afinal de contas todos nós – com aquilo que apelidamos de pós-Solução Final. Ou melhor, como descreveu na nossa entrevista o realizador de Red: Perigosos ou a série Divergente, tentar perceber se existiram atos de genocídio e abusos das tropas Wermacht, o exército regular nazi na 2ª Guerra Mundial, como sucedeu com a SS, diretamente envolvida no extermínio de judeus.
Na verdade, ao vermos O Capitão, captado com uma magnífica fotografia a preto e branco, de Florian Ballhaus (filho de Michael Ballhaus), provavelmente acabará por nos passar pela cabeça algumas imagens que vimos no aclamado e multipremiado O Filho de Saúl, de Laszlo Nemés. Só que aqui não existem judeus, apenas alemães. Isto porque o filme indica-nos logo na legenda inicial que estamos em solo alemão a duas semanas do armistício. Ou seja, para alguns, perto do caos e da tentativa de salvar a pele, desertando, embora para outros, a cega missão de se auto-convencerem de que a sua patente significa algo por tentar manter a disciplina férrea. Ou então, o que sucede a Willi Herold (Max Hubacher, entrou em Comboio Nocturno Para Lisboa), no fundo, um misto das duas.
Só que O Capitão é mesmo melhor do que O Filho de Saúl, já que o espírito de superioridade é capaz mesmo de se virar para dentro e, se preciso for, exterminar os seus. Esta ideia é tanto mais brutal, quando sabemos que é a adaptação de um livro baseado em documentos que provam diversas barbaridades cometidas por alemães contra alemães, nomeadamente os desertores, com o mesmo desdém sobre a condição humana que foi mostrado com os judeus. Portanto, aqui já não estamos a falar de uma questão de raça, mas tão somente de superioridade. Talvez por isso, Schwentke remeta algumas cenas que nos irão recordar a sua paixão por Bertold Brecht.
O filme começa precisamente com o soldado alemão Herold a correr tentando adiar por segundo a morte certa pelo grupo de compatriotas embriagados que disparam sobre ele. Depois de manter o milagre da vida, recebe outro milagre ao avistar um veículo oficial com um capitão nazi morto. É a oportunidade deste soldado raso assumir o poder através de uma promoção imediata. E será precisamente esse poder a corrompê-lo e a subjugar diante si uma série de militares de diferentes patentes que encontrará atrás da frente da derradeira batalha. Auto investido por Hitler numa missão de investigar o que se passava atrás das linhas, o nosso homem acaba mesmo por tornar-se numa temível figura a merecer a justiça deste filme.
Poupando-nos aos detalhes, e apesar das comparações que poderão ser feitas, em que as atrocidades são vistas pelo lado do agressor, O Capitão acaba por ser um muito eficaz estudo sobre o fascínio do poder, sobre a veneração germânica à obediência e às cadeias de comando, bem como, ou talvez mais importante ainda, o delírio bárbaro a que chegamos diante da opressão e da guerra.
Este percurso do Capitão acabará por atingir uma dimensão quase operática, tão bem ligada à herança deste povo e de toda a sua mitologia que aqui quase roça o burlesco. De resto, uma das cenas mais marcantes será o número de variedades feito num campo de detidos por deserção, por parte de um duo que anima os oficiais convivas como se fossem judeus. De resto, essa sublimação é bem acentuada em diversas ocasiões, como nas vestes dos prisioneiros marcadas com uma letra nas costas.
Apesar de todas as obras que afloraram este tópico, não nos lembramos de uma que tenha sido tão concreta em aflorar alguns tabus até agora intocados – como a tal retidão da tropa wermacht – ou a superioridade, mesmo para além da raça.
O Capitão é daqueles filmes que nos acorda para um pesadelo que julgávamos terminado.