IndieLisboa 2018
Boca do Inferno
Cineteatro Capitólio –
Sim. Sem tirar nem por. É sugestivo, provocador e fascinante em doses semelhantes o novo filme da dupla brasileira Marco Dutra e Juliana Rojas exibido na competição internacional para o Leopardo de Ouro, e que agora passa na secção Boca do Inferno, no IndieLisboa. Isto antes da sua estreia nacional pela Bold. Se quisermos a sugestão visual, diremos que o filme, claramente dividido em duas partes, estará algures entre a evocação efabulada de a versão queer de A Branca de Neve num encontro com o mito do lobisomem de uma São Paulo gótica. Um resultado que recebe um ótimo contributo do excelente trabalho de câmara do diretor de fotografia português Rui Poças.
Dito assim, de uma forma algo redutora poderia também significar que se tratava de um produto embalado em forma de pastiche. Nada disso. Marco Dutra e a ‘partenaire’ Juliana Rojas voltam a aflorar o universo fantástico (de que recordamos Trabalhar Cansa. apresentado no Un Certain Regard, em Cannes de 2011) embora num novelo de géneros e referências aplicadas com conta, peso e medida num guião (também de ambos) que alinhava com segurança a evolução de uma história aparentemente comezinha, mas que se transforma num poderoso e aliciante exercício de género. E o que são então as “boas maneiras”, senão aquela piscadela de olho a sugerir um olhar mais alargado à realidade e não apenas ao cardápio da etiqueta que uma personagem do filme teve de aprender.
Sem qualquer referência de sinopse ou do ilustrativo cartaz, pudemos captar o filme sem qualquer interferência ou referência. O que tornou ainda mais saborosa esta descoberta de um objeto holográfico que ora observa com atenção a sociedade brasileira, embora sem abdicar de um combinado de propostas de alguma cinefilia que decorrem da premissa inicial da relação de trabalho entre a babá Clara (com a lisboeta Isabel Zuaa, filha de mãe angolana e pai da Guiné-Bissau, ela que será a verdadeira protagonista do filme) e Marjorie Estiano, como uma fidalguinha grávida e futura mãe solteira, caída em desgraça depois da gravidez alheia com um estranho sacerdote. Ela recebe esta babá para todo o serviço no seu “castelo”, um apartamento de luxo, na linha das coberturas que Gabriel Mascaro captou num dos sus primeiros documentários Um Lugar ao Sol, em 2009)
Referências são muitas. Desde logo, o incontornável Rosemary’s Baby/A Semente do Diabo, de Polanski, bem como o legado do produtor Val Lewton, em particular aquele em parceria com Jacques Tourneur (curiosamente um cineasta cuja obra é alvo de retrospetiva no festival), nomeadamente Cat Peolple e I Walk With a Zombie, a estética cromática da Hammer que permitiu recriar uma metrópole de São Paulo fantástica e retocada; mas podemos sentir ainda a evocação do cinema de Dario Argento. Pelo caminho, há os vícios sociais de que não é alheio Kléber Mendonça Filho (tão evidentes em Aquarius). Isto, claro está, para além da relação queer entre Zuaa e Estiano a sugerir mesmo a opção de parentalidade do mesmo sexo. Só que o fruto do seu ventre será motivo para uma segunda parte, bem mais centrada nesse ser que recolherá referências mais óbvias a diversos mestres do horror.
Dito isto, não esquecemos que a ambição de As Boas Maneiras pode conter também os seus perigos, já que tal manancial de referências acaba por gerar um final demasiado calórico. Ainda assim, e mesmo na sua ambição – os tais dois filmes, que parecem até incluir o filme original e a sequela -, este é um enorme sinal de vitalidade do cinema brasileiro, que ainda recentemente nos tinha dado o excelente Arábia, de João Dumans e Affonso Uchoa. Uma enorme prestação também de Isabel Zuaa (de que será preciso ver também o seu papel imponente na co-produção luso-portuguesa Joaquim, de Marcelo Gomes, e ainda a imagem poderosa de Rui Poças que marca todo o filme.